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para passarem a ser um projecto colectivo em benefício de entidades
estranhas e diabólicas, tais como os mercados, as tendências, os índi-
ces, os ratings, os déficies, e em última análise, o dinheiro, eleito a
entidade endeusada e inquestionável. tudo era legítimo em nome do
dinheiro, do lucro e dos resultados duma gestão que apenas se preo-
cupava com números, estatísticas, resgates e juros. a sociedade não
crescia e só não diminuía mais rapidamente porque a esperança de vida
aumentara e aquilo que, cientificamente seria uma conquista, era con-
siderado pelos donos do dinheiro, como um sério entrave aos seus
planos para reduzirem cada vez mais a despesa devida à população
idosa e aposentada. nada os demovia, aos senhores do dinheiro, ávidos
de multiplicar os seus dividendos, de condenarem esta frágil franja da
população a uma condição de egoismo e esbanjamento dos dinheiros
públicos, mesmo que isso representasse um ataque aos seus próprios
progenitores ou mesmo avós, que descontaram toda a sua vida o que
sempre lhes foi exigido pelo estado, que todos consideravam pessoa
de bem. essa outrora pessoa de bem foi, no entanto, sendo assaltada
por gente de má fama, usurários e especuladores.
pensar nisto não melhorava nada o seu estado de desalento e in-
dignação. vieram-lhe à memória episódios da sua vida, breves reminis-
cências do tempo em que ainda fazia sentido sonhar. ao cruzar-se com
casais enamorados, que emanavam, mesmo assim, raios de esperança
e sonho, recordou-se que também amara. hoje já só amava escondido
dentro de si próprio. amava quase clandestinamente, em sonhos dor-
midos ou acordados e sentia falta dessa euforia da paixão. sentia-se
exilado na sua própria condição de desperdício duma sociedade que se
desumanizara e caminhava para formas inpensáveis de evolução. uma
evolução no sentido retrógrado da razão e da própria vida.
o rio, esse continuava lá, indiferente ao curso de vidas como as
dele e de muitos outros, escorraçados para o lado pesaroso e exceden-
tário da vida. restavam-lhe, por vezes, os amigos desses tempos fora
de prazo, com quem se condoía num rumor surdo de reclamações e
lamentos, mas nada lhe trazia esperança ou alívio a esta raiva que
sentia de já quase não ter forças para contrariar um futuro anunciado
de declíneo e esvaziamento crescentemente sentido. mas não era só ele
que o preocupava, nem os seus congéneres de destino semelhante. era
também a geração que cá deixava, os filhos, os netos, todos aqueles
que a sua descendência colocara neste mundo e a quem prometera e
incutira expectativas de que o futuro fosse cada vez mais risonho e
prometedor, como seria natural num universo em evolução e essa dor
e essa desilusão assaltavam-lhe a integridade em que sempre se for-
mara e crescera. o que deixava aos seus não era mais um futuro, mas
antes uma enorme e preocupante incerteza, que ele tinha consciência
de ter germinado ali à sua frente, sem que ele tivesse tido o discerni-
mento de que isto, mais tarde ou mais cedo, viesse a acontecer. teria
sido a sua própria incúria e desatenção a permitir que os vampiros
desta actualidade mórbida e voraz tomassem conta da vida de todos
nós, os crentes na pureza da humanidade?..
olhou mais uma vez os telhados da cidade e parecia-lhe já ver o
crepitar dos tempos a consumirem tudo aquilo que ajudara a construir.
caminhava cada vez mais lentamente, mais perdido e sozinho, atolado
por pensamentos que já nada significavam. triste e impotente, vislum-
brou um longo banco virado ao rio que insistia em chegar ao mar. um
banco sem céu, sem sonhos… sem nada!... sentou-se nele e ali se
deixou ficar. fechou os olhos e voltou a abri-los para um último olhar
à outra margem e assim se abandonou sem porvir, acometido do ago-
ra inevitável e anunciado síndrome da peste grisalha…
BOLETIM DA ASSOCIAÇÃO DOS PUPILOS DO EXÉRCITO 7