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CRÓNICAS
o sÍNdroMe da PesTe grIsalha…
ernâni balsa | 19600300
ubitamente sentiu-se assaltado por uma sensação de incomodidade. cores mais inimagináveis, quentes e vivas, como se de sangue se tra-
Snada lhe parecia mais estranho e no entanto, não sabia o que tasse, um sangue que mantinha a cidade viva e sã, alegre e melancóli-
pensar. nada, mas nada parecia fazer sentido naquele momento e não ca, hospedeira e ao mesmo tempo saudosista, acenando à despedida
sabia a causa daquele estado de indignação e revolta. tinha estancado, dos seus visitantes. tudo se mantinha na mesma e o sol aproximava-se
ficou ali parado, o olhar posto sem horizonte no rio que desfilava, qual do Bugio, como acontecia em todos os entardeceres, pintando em ouro
oceano, à sua frente. tantas vezes ali fora, apenas para deixar o rio a vagarosa corrente em direção ao mar que haveria de receber o Tejo
entrar na sua alma, deixar-se levar pelo verde da corrente em direcção em cada minuto da eternidade possível…
à foz, o céu azul, os navios cruzando a linha de água imensa, os caci- era sempre isto que procurava ali. deixava-se arrastar pela letargia
lheiros no seu vai-vem de margem a margem e a ponte, sempre atra- dos momentos em que mais nada lhe apetecia e sabia que ali, no cais,
cada aos dois pilares e suspensa pelos cabos poderosos da sua estru- à beira rio, com o casario e os restos dum porto, que durante tanto
tura familiar e nunca lhe tinha acontecido aquilo. normalmente colhia tempo permaneceu fechado à cidade, dum lado e aquela planície verde,
daqueles passeios uma agradável sensação de calmia e introspeção, azul e às vezes cinzenta, do outro, ali podia sentir-se perto e distante,
coisa que lhe alimentava o espírito e o conciliava com um certo tipo de protegido e ao mesmo tempo de peito aberto aos desafios que noutras
solidão que cultivava e lhe servia de espaldar para o seu feitio tímido circunstâncias se lhe negavam. sabia que se iria cruzar com pessoas,
e de difícil ligação ao mundo das pessoas mais extrovertidas… pessoas que nada sabiam dele, mas que ele tinha a liberdade de recriar
agora, ali especado e confuso, tentava discernimento suficiente para e para elas construir encenações mirabolantes, olhando apenas para
encontrar razão para aquela angústia, aquele sufoco que sentia, como cada rosto, observando cada gesto e postura. todos os que se cruzavam
se de repente a sua vida tivesse parado e continuasse apenas vivo, com ele, tinham uma história que germinava na sua cabeça e assim
porque respirava… mais nada… tudo o resto, o amanhã, os sonhos, conseguia estar permanentemente acompanhado na solidão de que se
os projectos e a própria normalidade do dia a dia, tudo isso lhe parecia alimentava.
adiado, ou pior ainda, improvável e mesmo impossível… mesmo o lembra-se que durante uma vida de trabalho, de cumprimento das
mais logo, a seguir, a noite que havia de cair, o sono que haveria suas obrigações, de respeito pelos outros e entrega às causas da cida-
de dormir, tudo isso parecia ter sido abalado por aquela sensação de dania, sempre sonhou com este tempo, agora, o tempo de todo o tempo
impotência sobre o controlo da sua vida… do mundo, para se ocupar das suas motivações pessoais, intelectuais e
ensaiou alguns passos e concluiu que podia caminhar. não era lúdicas. aposentado e livre de horários, continuava atento e sempre que
imobilidade física que o tinha atingido. era assim qualquer coisa que possível interventivo nas coisas da sociedade, informado e crítico, mas
lhe tomava o fluxo do pensamento e principalmente lhe ameaçava o também colaborante e solidário com as pequenas e grandes causas da
futuro. como se, de repente, alguém lhe tivesse cortado as amarras que humanidade, eram, no entanto, estes serenos momentos de diálogo com
o ligavam ao tempo que ainda esperava viver, como se esse tempo o silêncio, de confronto com o espaço que o rodeava e o exercício do
estivesse lá, na longura da sua esperança de vida, mas ele não o con- pensamento, que lhe transmitiam um sossego e tranquilidade que lhe
seguisse aproveitar duma forma minimamente feliz e digna, como se alimentava a alma, os olhos e a mente. eram, muito frequentemente, a
um peso enorme e diabólico lhe tivesse caído em cima e o reduzisse a oportunidade de ter as conversas silenciosas que tomavam o lugar de
um ser sem sustentabilidade para viver, mas apenas para existir. outras que ele até gostaria de ter com pessoas que nunca conhecera,
aos poucos recuperou a capacidade de olhar para além do seu mas sabia existirem. as palavras, guardava-as para a escrita que sempre
pânico e viu que o rio continuava lá e mesmo que um navio enorme, exercitou e que era como que uma catarse de si próprio. o leito do seu
carregado de contentores, subia o leito, em busca de um cais para rio de pensamentos, de dúvidas e incertezas.
descarregar. e mais outro, um paquete daqueles de cruzeiro, levantava o tempo, este tempo, era cada vez mais um tempo de desconstrução
amarras, com os turistas no convés, enxaguando os olhos com a últimas e coisificação das pessoas. uma vaga de reciclagem de resíduos sólidos
imagens da cidade… a cidade branca… a cidade da luz inigualável que e metafísicos humanos, em que a natureza do homem era descartável
tanto maravilhava os seus visitantes. uma luz inebriante e inolvidável, e substituível pela sua componente submissa apenas, em que as pes-
que corria nas veias e nos telhados de lisboa e pintava o casario das soas deixavam de ser projectos individuais em respeito pelo colectivo,
6 BOLETIM DA ASSOCIAÇÃO DOS PUPILOS DO EXÉRCITO