Page 8 - Boletim APE_228
P. 8

CRÓNICAS


           o sÍNdroMe da PesTe grIsalha…



           ernâni balsa | 19600300



















              ubitamente sentiu-se assaltado por uma sensação de incomodidade.   cores mais inimagináveis, quentes e vivas, como se de sangue se tra-
           Snada  lhe  parecia  mais  estranho  e  no  entanto,  não  sabia  o  que   tasse, um sangue que mantinha a cidade viva e sã, alegre e melancóli-
           pensar. nada, mas nada parecia fazer sentido naquele momento e não   ca, hospedeira e ao mesmo tempo saudosista, acenando à despedida
           sabia a causa daquele estado de indignação e revolta. tinha estancado,   dos seus visitantes. tudo se mantinha na mesma e o sol aproximava-se
           ficou ali parado, o olhar posto sem horizonte no rio que desfilava, qual   do Bugio, como acontecia em todos os entardeceres, pintando em ouro
           oceano,  à  sua  frente.  tantas  vezes  ali  fora,  apenas  para  deixar  o  rio   a vagarosa corrente em direção ao mar que haveria de receber o Tejo
           entrar na sua alma, deixar-se levar pelo verde da corrente em direcção   em cada minuto da eternidade possível…
           à foz, o céu azul, os navios cruzando a linha de água imensa, os caci-  era sempre isto que procurava ali. deixava-se arrastar pela letargia
           lheiros no seu vai-vem de margem a margem e a ponte, sempre atra-  dos momentos em que mais nada lhe apetecia e sabia que ali, no cais,
           cada aos dois pilares e suspensa pelos cabos poderosos da sua estru-  à beira rio, com o casario e os restos dum porto, que durante tanto
           tura familiar e nunca lhe tinha acontecido aquilo. normalmente colhia   tempo permaneceu fechado à cidade, dum lado e aquela planície verde,
           daqueles passeios uma agradável sensação de calmia e introspeção,   azul e às vezes cinzenta, do outro, ali podia sentir-se perto e distante,
           coisa que lhe alimentava o espírito e o conciliava com um certo tipo de   protegido e ao mesmo tempo de peito aberto aos desafios que noutras
           solidão que cultivava e lhe servia de espaldar para o seu feitio tímido   circunstâncias se lhe negavam. sabia que se iria cruzar com pessoas,
           e de difícil ligação ao mundo das pessoas mais extrovertidas…  pessoas que nada sabiam dele, mas que ele tinha a liberdade de recriar
              agora, ali especado e confuso, tentava discernimento suficiente para   e para elas construir encenações mirabolantes, olhando apenas para
           encontrar razão para aquela angústia, aquele sufoco que sentia, como   cada rosto, observando cada gesto e postura. todos os que se cruzavam
           se  de  repente  a  sua  vida  tivesse  parado  e  continuasse  apenas  vivo,   com ele, tinham uma história que germinava na sua cabeça e assim
           porque respirava… mais nada… tudo o resto, o amanhã, os sonhos,   conseguia estar permanentemente acompanhado na solidão de que se
           os projectos e a própria normalidade do dia a dia, tudo isso lhe parecia   alimentava.
           adiado, ou pior ainda, improvável e mesmo impossível… mesmo o   lembra-se que durante uma vida de trabalho, de cumprimento das
           mais  logo,  a  seguir,  a  noite  que  havia  de  cair,  o  sono  que  haveria    suas obrigações, de respeito pelos outros e entrega às causas da cida-
           de dormir, tudo isso parecia ter sido abalado por aquela sensação de   dania, sempre sonhou com este tempo, agora, o tempo de todo o tempo
           impotência sobre o controlo da sua vida…           do mundo, para se ocupar das suas motivações pessoais, intelectuais e
              ensaiou  alguns  passos  e  concluiu  que  podia  caminhar.  não  era   lúdicas. aposentado e livre de horários, continuava atento e sempre que
           imobilidade física que o tinha atingido. era assim qualquer coisa que   possível interventivo nas coisas da sociedade, informado e crítico, mas
           lhe tomava o fluxo do pensamento e principalmente lhe ameaçava o   também colaborante e solidário com as pequenas e grandes causas da
           futuro. como se, de repente, alguém lhe tivesse cortado as amarras que   humanidade, eram, no entanto, estes serenos momentos de diálogo com
           o  ligavam  ao  tempo  que  ainda  esperava  viver,  como  se  esse  tempo   o silêncio, de confronto com o espaço que o rodeava e o exercício do
           estivesse lá, na longura da sua esperança de vida, mas ele não o con-  pensamento, que lhe transmitiam um sossego e tranquilidade que lhe
           seguisse aproveitar duma forma minimamente feliz e digna, como se   alimentava a alma, os olhos e a mente. eram, muito frequentemente, a
           um peso enorme e diabólico lhe tivesse caído em cima e o reduzisse a   oportunidade de ter as conversas silenciosas que tomavam o lugar de
           um ser sem sustentabilidade para viver, mas apenas para existir.  outras que ele até gostaria de ter com pessoas que nunca conhecera,
              aos  poucos  recuperou  a  capacidade  de  olhar  para  além  do  seu   mas sabia existirem. as palavras, guardava-as para a escrita que sempre
           pânico e viu que o rio continuava lá e mesmo que um navio enorme,   exercitou e que era como que uma catarse de si próprio. o leito do seu
           carregado  de  contentores,  subia  o  leito,  em  busca  de  um  cais  para   rio de pensamentos, de dúvidas e incertezas.
           descarregar. e mais outro, um paquete daqueles de cruzeiro, levantava   o tempo, este tempo, era cada vez mais um tempo de desconstrução
           amarras, com os turistas no convés, enxaguando os olhos com a últimas   e coisificação das pessoas. uma vaga de reciclagem de resíduos sólidos
           imagens da cidade… a cidade branca… a cidade da luz inigualável que   e metafísicos humanos, em que a natureza do homem era descartável
           tanto maravilhava os seus visitantes. uma luz inebriante e inolvidável,   e substituível pela sua componente submissa apenas, em que as pes-
           que corria nas veias e nos telhados de lisboa e pintava o casario das   soas deixavam de ser projectos individuais em respeito pelo colectivo,

            6                                                               BOLETIM DA ASSOCIAÇÃO DOS PUPILOS DO EXÉRCITO
   3   4   5   6   7   8   9   10   11   12   13