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CRÓNICAS


           TraTaMeNTo do adágIo PoPUlar


           “qUeM CaNTa, seU Mal esPaNTa”



           “Tiago” barroso | 19460120



               anel da Burra, assim conhecido e chamado, porque, desde novo,   vinho na tasca do Chico Zé, e que jazia, numa cama de hospital com
           Mera o elo de ligação entre a aldeia e a vila, como se fosse um correio   uma maleita que os médicos não conseguiam diagnosticar.
           diário  no  transporte  de  pequenas  e  médias  encomendas  e,  para  isso,   Quem  sabe  se,  neste  momento,  não  estaria,  muito  em  surdina,
           fazia-se sempre acompanhar duma alimária dessa espécie, o que, entre   dizendo:
           a gente simples da terra, foi o suficiente para lhe criar o sobrenome.  Senhor ouve o meu cantar,
              Manel era viúvo há quase quarenta anos, que a mulher morrera com   um pedido, um suplicar,
           uma tuberculose galopante, cinco anos depois de casados. Não tinha   que me sai do coração,
           filhos  e  vivia  na  pequena  casa,  herança  de  seus  pais,  ao  fundo  da    porque dizem que, quem canta,
           pequena e única rua da aldeia.                                     o seu mal todo espanta
              Agora, prestes a completar oitenta e dois anos, e já desligado da   nesta simples oração.
           actividade, ainda costumava passear, diariamente, pelos caminhos de   E o burrico lá vai acompanhando o Manel neste passeio lento. A
           terra poeirenta do seu local de nascimento, logo seguido pelo insepa-  arreata está solta, que o caminho é sempre o mesmo e o tempo não
           rável  e  derradeiro  burro,  rememorando  aqueles  saudosos  tempos,  e   conta. Acompanha o dono no mesmo passo vagaroso e pára quando
           cantando, muito baixinho, para si mesmo, um adágio aprendido nos   ele pára, sem que seja necessário dar-lhe qualquer ordem.
           seus  tempos  de  criança,  em  versos  que  lhe  iam  surgindo  a  cada    Mais adiante, o pequeno olival que ladeia a estrada onde o caminho
           momento.                                           desembocou, era explorado pelos filhos da Josefa que se encontrava a
                          Sinto que é uma despedida           viver com um deles, na cidade e, segundo constava, parece que não era
                            este momento da vida              lá muito bem tratada. Dizia-se até que o pequeno pecúlio que amealha-
                            que me parece irreal,             ra durante uma árdua vida de trabalho, tinha sido desbaratado por esses
                          lembro a minha mocidade             descendentes.
                          mas canto toda a saudade               Já há muito tempo que ela não aparecia na aldeia, mas todos os
                           para espantar o meu mal.           anos se fazia a apanha da azeitona, na devida altura, com a presença
              Um pouco mais adiante, lobrigou a Ti Maria Rosa que se prepa-   do filho mais velho que apenas respondia por monossílabos às pergun-
           rava para entrar em casa, depois de sachar a pequena horta, donde    tas formuladas sobre a saúde da mãe.
           tirava algumas verduras para compensar o pequeno subsídio mensal.   Na cidade, onde padeces,
           Era da sua geração e também viúva, que o marido, o Zé Custódio, bom   parece até que te esqueces
           homem, se finara já ia para seis anos.                            que um ditado se levanta,
              Tivera  apenas  dois  filhos,  um  dos  quais  morrera  na  guerra  de   canta, canta, minha amiga,
           África. O outro, já há vários anos, que emigrara e, lá por fora, consti-  p’ra que este povo não diga
           tuíra  uma  família  que  somente  conhecia  pelas  fotografias  que  lhe   que o teu mal não se espanta.
           mandava. Como ela gostaria de abraçar os netos...     Finalmente, Manel da Burra chegou à sua pequena casa e logo o
              Maria Rosa guardava, religiosamente, todas as cartas que recebia   seu cuidado foi colocar o burro no palheiro, pôr-lhe comida fresca e
           e que, logo a seguir, a correr, pedia ao Manel para lhe ler, apesar des-  ajeitar-lhe a cama de palha. Depois subiu o pequeno degrau à frente da
           te  pouco  mais  que  soletrar.  Durante  a  leitura,  as  lágrimas  rolavam,    porta, entrou, volteou pela cozinha, foi direito à salgadeira e cortou um
           silenciosamente, pelas rugas duma face cansada.    naco de toucinho que colocou em cima duma alva fatia de pão. Com
              E Manel, ia acrescentando à cantilena.          a comida e a navalha numa mão, com a outra pegou numa pequena
                             Ali vai Maria Rosa               cadeira de palha e voltou a sair.
                           toda dobrada, chorosa,                Sentado,  com  as  costas  da  cadeira  apoiadas  na  parede  caiada,
                          e alma cheia de esperança,          enquanto ia cortando pequenos pedaços de pão e conduto, os olhos
                          com tanta ruga, inda sonha,         não deixavam de contemplar o sol que começava a desaparecer para lá
                          canta a saudade medonha             dos chaparros do monte do doutor Jacinto. Daí a recordar o adágio que
                          do filho que tem em França.         o acompanhara todo o santo dia, foi um ápice.
              Por  vezes,  Manel  punha  os  olhos  no  chão,  como  que  a  querer   Então, para finalizar os pensamentos centrados no motivo que o
           contar as pedras que ladeavam o caminho, porém sempre atento ao   acompanhou durante toda a santa tarde, deu por si a compor, mental-
           mais pequeno pormenor que lhe pudesse despertar a atenção. Nesses   mente, a canção que foi trauteando, até os olhos se lhe cerrarem numa
           momentos parecia escutar palavras soltas que tentava fixar para compor   ligeira modorra.
           um poema. Também lhe vinham à memória os seus tempos de criança,   No meu viver, sossegado,
           quando corria para a escola que abandonou, bem cedo, para ajudar o   se cair, em qualquer lado,
           pai nos trabalhos do campo.                                      tenho Deus que me levanta,
              Um cão que corria, veloz, ao encontro da origem do seu farejo,   e não me posso queixar
           situado  junto  a  uma  cancela  meio  desmantelada,  fez-lhe  lembrar  o   pois passo o dia a cantar,
           amigo Joaquim Lavrador, companheiro, pela tardinha, duns copitos de   quem canta seu mal espanta.



               BOLETIM DA ASSOCIAÇÃO DOS PUPILOS DO EXÉRCITO                                              11
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