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CRÓNICAS


           as CrIaNÇas, as arMas e deUs



           rui Cabral Telo | 19480265







              os 11 anitos dei entrada no “Pilão”. Durante sete anos foram-me   coisas destas? O que levará um jovem de 20 anos a massacrar daque-
           Aincutidas as bases que me permitiram ser o que fui e sou. Logo   le modo Mãe, professores e crianças?
           de início as armas foram-me mostradas, ensinadas e por mim usadas.   Agora chora-se e todos pensam resolver a situação modificando a
           Tive, como todos nós, instrução militar com armas, instrução teórica   lei das armas nos “States”. É certo que há armas a mais e que a sua
           sobre armamento e prática de tiro com as tão apreciadas deslocações   proximidade  e  profusão  poderá  facilitar  estes  acontecimentos,  mas
           à Serra da Carregueira. Lembro-me de em criança brincar aos “cóbois”   qualquer alteração ou proibição não resolverá nada. O que seria pre-
           com os tão apetecíveis revólveres de barro adquiridos nas feiras da   ciso era mudar as mentalidades.
           Agualva ou Mercês, depois de muito azucrinar a cabeça ao meu Pai.  Os USA foram criados à lei da bala. Muitos outros países também,
              Lembro-me dos muitos Pum! Pum! E Pá! Pá! com que brindávamos   mas não esqueçamos que nos fins do século XIX e princípios do XX,
           os nossos “inimigos” quase sempre os que faziam o papel de índios   nos USA, ainda se resolviam diferendos e se defendiam honras a tiro,
           e de bandidos. Eram esses os “maus” que os “western” nos mostravam   principalmente nas terras do Oeste. O uso da arma sempre foi, para os
           como não fazendo mal abater. Os “bons” e o “rapaz” nunca morriam.  americanos, a prova de que “tenho uma arma tenho a razão”. Só que
              No “Pilão” aprendi que as armas, que nos mostravam e ensinavam,   os  marginais  e  os  doidos  também  pensam  assim.  Podem  retirar  e
           serviam apenas para a guerra. Da guerra começámos a ter aquela visão   legislar montes de arrazoados sobre armas mas estas situações irão
           romântica dos “bons” que lutavam contra os “maus” para salvarmos a   continuar. Veja-se o que acontece cá com a nova lei das armas, os
           humanidade de “terríveis” ditadores que se queriam assenhorear do   “bons” não as conseguem mas os “maus” compram-nas por todo o
           mundo. O inimigo também não fazia mal matar. Esquecíamos que os   lado. Para o exercício da caça qualquer um consegue uma arma, depois
           inimigos também eram homens, que também acreditaram nos seus   de pagar montes de licenças e exames ao estado. Esquecem-se que as
           líderes e nos combatiam por motivos idênticos aos nossos. Esque-   caçadeiras também matam pessoas.
           cíamos que o soldado que se abatia com toda a frieza, também tinha   A  humanidade  é  má.  Está  nos  nossos  genes.  Criámos  deuses
           Mãe, Pai, mulher ou filhos e que todos os familiares choram os seus   protectores da nossa vida e também para que nos aconcheguem para
           mortos.                                            além da morte, mas esses deuses são só nossos, para os outros, eles
              Por gostar de coisas mecânicas também gostei e gosto de armas   que tratem de lhes pedir protecção e se não a conseguirem que se
           e possuo algumas que fui adquirindo ao longo da vida. Fui um bom   lixem. Esquecemo-nos de criar deuses que, não só nos protejam, mas
           aluno a armamento e alguns dos meus amigos podem confirmar isso.   que façam com que os mortais sejam bons e não se matem uns aos
           A maioria estava-se nas tintas para aquilo e nada sabiam, pois não   outros. Para o “índio”, para o “bandido” para o “inimigo” não haverá
           contava para nota, além de que a instrução era ministrada pelo “sar-  deuses que os salvem, mas poderíamos ter ”criado” um deus que nos
           noso”,  o  capitão  Albuquerque.  Pratiquei  tiro  desportivo  à  bala  e  a   fizesse ter amor e carinho pelos que consideramos diferentes.
           chumbo e ainda hoje caço. Nunca ensinei o meu filho a mexer numa   Com esta mentalidade, continuarão os massacres de inocentes, e
           arma, teria tempo para isso se fosse essa a sua vocação. Não só não   mais nos USA do que noutros países onde também os há mas em
           mexia como sabia que mais ninguém podia mexer e durante anos as   menor escala.
           armas estiveram expostas em minha casa sem que ele ou algum ami-  Mais  uma  vez  “Deus”  não  esteve  lá.  E  não  me  venham  com  a
           go  lhes  tivesse  tocado.  Hoje  não  só  não  lhes  liga,  como  abomina   cantilena de que se assim aconteceu foi porque ele assim quis, pode-
           qualquer violência, o que me deixa o problema de não saber a quem   ria ter encontrado outra forma, menos violenta e traumatizante, para os
           deixar o arsenal.                                  “chamar” à sua presença.
              Vem  todo  este  arrazoado  a  propósito  do  que  se  passou  numa   Os massacres de inocentes continuarão, por mais lágrimas que o
           terreola  do  estado  do  “Connecticut”  nos  USA.  Porque  acontecem   Obama verta.









                   O que é                                                           é bom









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