Page 16 - Boletim APE_225
P. 16
EVOCAÇÕEs
A Dívida
meu pai entrou para os Pupilos do Exército em
O 1944.
Eram tempos difíceis e o meu avô, Furriel na altura,
teve que ir para longe, para Cabo Verde para garantir o
sustento da família, incluindo a mensalidade dos Pupilos.
Nessa altura não se falava de “ratios” e duvido que o meu
avô conhecesse a palavra. Conhecia a expressão “pão nosso
de cada dia” e tinha a ambição suficiente para mudar a sua
vida. E a da família. Por isso tinha vindo do Bairro de Mi- O Capitão Carlos Soares em Angola
ragaia, no Porto, para Mafra, para o Exército. Para o Estado. Bem, ele assim pensava, mas a conta dos Pupilos esta-
Nessa altura, a vida era difícil. va longe de estar paga.
O meu pai vestiu as primeiras calças quando entrou Em 1961 eclodiu a guerra em Angola e o meu pai foi
para os Pupilos. Os sapatos deixaram de ser forrados a mobilizado ao serviço do Estado. Mais tarde, eu e a minha
cartão para tapar os buracos das solas... passou a ter outras mãe fomos ter com ele a Nova Lisboa, hoje Huambo.
condições. Em Nambuangongo a situação estava difícil, pelo que
Nessa altura não se fa- o meu pai que era um Oficial desembaraçado, antigo
ziam tantas contas, falava-se aluno dos Pupilos, foi comandar o Destacamento de In-
mais em repartir. Dividia-se tendência 228, para servir o Exército. O meu pai sentia-se
primeiro e esperava-se pela bem, retribuía ao Estado a formação de eleição que lhe
multiplicação. Mas ontem tinha proporcionado e uma vida substancialmente melhor
como hoje, tinha que se que a do meu avô. Era justo.
pagar. Foram 17 meses de campanha, dezassete meses. Fiquei
E o meu avô começou em Luanda com a minha mãe e via o meu pai de quando
por pagar primeiro com a em vez. Ainda me recordo de o ver chegar de surpresa,
Comissão em Cabo Verde. de camuflado e cheio de pó ao quarto da pousada em que
A família ficava em Mafra, eu vivia com a minha mãe. Tristeza? Não, resignação. O
lá longe, mas um dos filhos
O aluno 19440185 meu pai exercia a profissão que tinha escolhido, servir o
estudava nos Pupilos do Exér- Estado, e não fazia mais do que pagar uma dívida antiga
cito, carinhosamente denominado “Pilão”. Se tivesse juízo aos Pupilos do Exército: a sua formação e a sua ascensão
e sorte, a sina da família poderia mudar. Ele pagava. social. Nessa altura não se faziam muitas contas e não me
O meu pai foi fazendo o seu papel, estudando. O meu recordo de se falar em “ratios”. Falava-se em Missão e em
avô continuava a pagar diligentemente ao Estado. Sem Servir. E as contas pagavam-se.
esmorecer, sem lamentações, talvez o filho entrasse para Seguiram-se mais duas comissões em Angola, a servir
a Escola do Exército e a sua vida mudasse. Ele não se a Pátria e a pagar a dívida dos Pupilos. Sem lamentações.
importava de continuar a pagar. O Estado tinha ajudado, Era justo.
tinha sido promovido a Sargento. As contas continuaram A família era importante mas... primeiro o País. Mudar
a aparecer, mas o meu avô, homem do Norte, não se assus- várias vezes de Escola Primária e de Liceu? Qual era o
tava. Pagou com mais uma Comissão em Moçambique e problema? Os miúdos adaptam-se. O que era isso com-
duas no Estado da Índia, sem a Família. parado com o que ele tinha passado no Pilão? Primeiro
A conta da vida e a dos Pupilos estava pesada, mas ele servia-se o Estado. Não, nesse tempo faziam-se outras
conseguiu o seu objetivo e quando terminou aos 60 anos contas. “Ratios”? Não, ainda não tinham chegado. Mas as
na Escola Prática de Infantaria, o seu filho era Oficial de dívidas pagavam-se.
Administração Militar. A vida do meu avô terminou cedo Era preciso continuar para que outros também pudes-
mas orgulhosamente tinha pago a felicidade do filho e a sem mudar as suas vidas. Era preciso dar oportunidade ao
conta do Pilão. Afinal, Querer é Poder. mérito dos outros, independentemente do Apelido.
14 | Boletim da Associação dos Pupilos do Exército