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antiga casa, era normal encontrá-lo sentado no parapeito   res comuns desfechados pelo Pai podem ser importantes.
          da janela do seu quarto, com a viola pousada no colo e o   Salvou-me  o  telemóvel,  tantas  e  tantas  vezes  também
          cigarro aceso. Era um 15º andar dum prédio em Miraflores   carrasco. Era o Xico, o meu amigo Xico que do seu belo
          com 15 andares. À sua frente não tinha nada que impe-  apartamento  da  Ericeira,  com  uma  vista  incrível  para  o
          disse o seu espírito livre de voar para lá do espaço, como   mar,  me  dizia  bonacheirão  como  os  ribatejanos  como
          se de repente tivesse chegado ao cimo do mundo e por   ele sabem ser “estás bom Zé?, imagina que estou a bebe-
          ele vagueasse. Sem limites, sem barreiras, sem sons para   ricar  uma  cerveja  e  pensei  que  podias  dar  um  salto  até
          além dos que a sua poesia gerava no seu cérebro e que,   aqui para irmos comer uns caracóis que é o que apetece
          vezes sem conta, ia passando ao papel com uma lucidez   com o calor abrasador que está”. Lá lhe expliquei que não,
          e uma nostalgia fora do comum. Sempre foi assim e, hoje,   não  podia  ser  porque  estava  no  Porto.  Que  ficava  para
          eu compreendo que há seres para quem grades ou espar-  a  próxima  semana.  Desliguei  e  quando  me  preparava
          tilhos nunca funcionarão mesmo que as suas rotinas repi-  para continuar a minha conversa, eis que o toque de men-
          tam gestos ou que o muro seja alguma vez saltado. Pausa-  sagem  telefónica  soa.  Parecia  haver  uma  conjugação  do
          damente, mas de uma forma decidida, ele voltou-se para   destino para me ajudar a enfrentar com mais calma a si-
          mim, fitou-me com aqueles olhos expressivos que sempre   tuação que estava a viver com o meu filho. Olhei para o
          teve e, naquele instante, já com uma pequena lágrima a   número. Era o Fagundes, também “pilão”. Não resisti e abri
          esconder a tristeza, eu sabia que o seu coração amargura-  a mensagem “morreu o Jacob. Vai ficar na Igreja do Mon-
          do ia abrir-se finalmente e deixar sair um pouco do que   te Abraão.”
          foi a sua vida, conturbada, nos últimos 3 anos. “ Sabes, Pai,   Eram aproximadamente 6 da tarde. Lá fora continuava
          eu ainda estava à espera. Tentei não mexer em nada du-  a fazer um calor abrasador e dentro daquela pequena sala,
          rante estes 12 meses, nada que me obrigasse a interiorizar   naquele  pequeno  instante  de  vida,  conseguiu-se  sentir,
          que ela não viria mais. Era como ter medo de remar no   quase em simultâneo, a ilusão dos caracóis, a dor que os
          meu  barco  à  deriva,  com  medo  que  ao  mais  pequeno   sentimentos haverão sempre de provocar e o fim que não
          movimento dos remos o barco se voltasse e eu morresse   se quer. É a vida na sua plenitude.
          afogado. Ao contrário de toda a gente, eu ainda pensava
          que podia acontecer como quando eu vivia no Algarve e,
          no auge do desespero, peguei no telefone e lhe disse: pre-
          ciso de ti, preciso de te ver. E ela veio a correr! Tudo es-
          quecido,  tudo  recomeçava,  como  viria  a  recomeçar  não
          mais uma, mas três e depois quatro vezes, sempre entre o
          estertor de uma expiação que eu não quis mas que me
          persegue sem parar”.
            Olhei-o com a firmeza de quem não pode dar parte
          de fraco. Estou de fora, pensei, não é nada comigo e não
          tenho de saber o que dizer, mas o homem para quem eu
          olhava, meu filho, apesar de curado e de forte como já há
          muito não o via, era, naquele instante de mudança da sua
          casa, a casa onde vivera o seu amor e que em cada centí-
          metro  e  em  cada  papel  amarrotado  na  secretária  lhe
          haveria sempre de lembrar um romance que quase o ia
          destroçando, ele era a imagem de quem acabava de deitar
          fora, ao lixo, parte da sua vida que há muito, ele sabia-o,
          já  não  existia.  Em  cada  embrulho  mal  feito  que  jazia
          encostado às paredes, em cada saco plástico cheio de coi-
          sas  comuns,  muito  mais  do  que  tralha  que  eu  deveria
          transportar para Lisboa, estavam pequenos nadas com que
          ele tinha vivido a sua grande história de amor, agora pen-
          sada como irrepetível e única. E fora ele, neste momento,
          que  o  decidira  após  uma  eternidade  de  resistência  que
          quase o transportou para a insanidade e depois a raiva e
          depois  a  dor  imensa.  Mas  como  aceitar?  E  como  viver
          a  aceitar  aquilo  que  nos  martiriza?  Lugares  comuns,  só
          lugares comuns me ocorreram mas às vezes até os luga-


                                                                                        Boletim da associação dos PuPilos do exército  17
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