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cróNicas
JoSé crUz e coSTA
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Uma Folha Solta do meu Diário…
os olhos não o deixavam mentir
que naquele momento, com o dramatismo que o senti-
mento sempre empresta a tudo onde vive, o imóvel pode-
ria explodir a qualquer altura. Lá fora ouvia-se um barulho
ensurdecedor a que eu já não estava habituado. A rua é
bastante estreita e, sendo central, perpendicular a Santa
Catarina, por ela passam ininterruptamente autocarros,
motocicletas e pessoas numa sucessão interminável até
que a manhã aconteça. Na primeira noite não consegui
dormir nada, habituado como estou ao sossego do campo
e à quietude de uma quintinha, murada, onde o barulho
dos passarinhos, ao amanhecer, é o único som de relevo
na opção calma que escolhi. Dizem-na de qualidade. Tem
dias, como diz um amigo meu. Às vezes também é neces-
sário respirar vida mesmo que dela não retiremos senão o
frenesim vazio das horas que se vão escoando por entre
os medos e as ilusões do dia-a-dia. Já nem eu me lembra-
José Cruz, Porta Guião (1.º da direita)
va o que era viver no Porto, passados que foram 20 anos
medida que se movia, lentamente, por entre os mi- de uma vivência única, como única é a experiência de
À lhentos embrulhos mal feitos e encostados às paredes, alguém com 24 anos, regressado de África, chegar àquela
as fichas de electricidade espalhadas pelo chão da sala de cidade e, aos poucos, ir conquistando a cidade e por ela
estar e os sacos de plástico que, às dezenas, se comprimiam ser conquistado pela sua beleza inigualável, pelo seu exo-
meio abertos meio fechados à espera de serem utilizados, tismo mas também pelo sentir das pessoas que lá vivem
ele não articulou palavra ou som que se ouvisse naquele e que, pelo seu lado tão humano e franco as diferenciam,
espaço já de si tão pequeno. O cigarro movia-se quase à pela positiva, de todas as outras que eu conheço.
velocidade da mão que o segurava, ora incandescente como De repente ele parou.
a alma que o guiava vertiginosamente, ora escondido na Os seus olhos estavam fitos na janela, olhando para fora
cinza que aos poucos o ia esvaziando tal e qual o seu e para o prédio que, já velho, se perfilava na sua frente há
coração, a sua razão e todo o seu ser. mais de 1 ano. Ambos sabíamos que a mudança daquela
Em todos os movimentos que fez sentia-se sempre casa era inevitável há muito, mas por força de uma dia-
presente a dicotomia da vida. Se por um lado todo ele era léctica nunca por mim compreendida, fora também sendo
energia e decisão nos seus gestos e nas suas atitudes, o sucessivamente adiada como que algo pudesse acontecer
homem dono do seu destino, intrépido e a saber o que que o fizesse evitar. Há muito que o exorcizar das recor-
quer, por outro adivinhava-se nele uma vulnerabilidade dações e o enterrar definitivamente um passado recente
incrível, qual menino perdido sem saber para onde vai e doloroso era obrigatório para a recuperação emocional de
porque vai. Estava mais trémulo. Muito mais do que ha- um espírito que, sendo brilhante desde muito novo, não
bitualmente quando eu lhe dizia que aquilo era do tabaco. conseguiu resistir com o desgosto. No dia anterior, ainda
Mas agora não era, ambos o sabíamos, mas cada um à sua livre da emoção que hoje estava a sentir, tinha-me confi-
maneira procurou esconder o que se passava nas nossas denciado que da casa, e para além da recordação do que
cabeças, com medo de tocarmos em algo que pudesse dela vivera,o que mais o incomodava era ter aquele prédio
descambar naquilo que não queríamos. na sua frente. Que lhe faltava espaço e que sem espaço
Eram 4 da tarde de um dia de finais de Julho. O pe- ele não vivia bem. Compreendi-o bem, talvez como nun-
queno apartamento abafava de calor e o que parecia era ca o tivesse conseguido. Enquanto viveu comigo, na nossa
16 Boletim da associação dos PuPilos do exército