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cróNicas



            JoSé crUz e coSTA
            19620265



            Uma Folha Solta do meu Diário…


            os olhos não o deixavam mentir





                                                               que  naquele  momento,  com  o  dramatismo  que  o  senti-
                                                               mento sempre empresta a tudo onde vive, o imóvel pode-
                                                               ria explodir a qualquer altura. Lá fora ouvia-se um barulho
                                                               ensurdecedor a que eu já não estava habituado. A rua é
                                                               bastante estreita e, sendo central, perpendicular a Santa
                                                               Catarina,  por  ela  passam  ininterruptamente  autocarros,
                                                               motocicletas  e  pessoas  numa  sucessão  interminável  até
                                                               que  a  manhã  aconteça.  Na  primeira  noite  não  consegui
                                                               dormir nada, habituado como estou ao sossego do campo
                                                               e à quietude de uma quintinha, murada, onde o barulho
                                                               dos passarinhos, ao amanhecer, é o único som de relevo
                                                               na opção calma que escolhi. Dizem-na de qualidade. Tem
                                                               dias, como diz um amigo meu. Às vezes também é neces-
                                                               sário respirar vida mesmo que dela não retiremos senão o
                                                               frenesim vazio das horas que se vão escoando por entre
                                                               os medos e as ilusões do dia-a-dia. Já nem eu me lembra-
            José Cruz, Porta Guião (1.º da direita)
                                                               va o que era viver no Porto, passados que foram 20 anos
                 medida que se movia, lentamente, por entre os mi-  de  uma  vivência  única,  como  única  é  a  experiência  de
            À  lhentos embrulhos mal feitos e encostados às paredes,   alguém com 24 anos, regressado de África, chegar àquela
            as fichas de electricidade espalhadas pelo chão da sala de   cidade e, aos poucos, ir conquistando a cidade e por ela
            estar e os sacos de plástico que, às dezenas, se comprimiam   ser conquistado pela sua beleza inigualável, pelo seu exo-
            meio abertos meio fechados à espera de serem utilizados,   tismo mas também pelo sentir das pessoas que lá vivem
            ele não articulou palavra ou som que se ouvisse naquele   e que, pelo seu lado tão humano e franco as diferenciam,
            espaço já de si tão pequeno. O cigarro movia-se quase à   pela positiva, de todas as outras que eu conheço.
            velocidade da mão que o segurava, ora incandescente como   De repente ele parou.
            a alma que o guiava vertiginosamente, ora escondido na   Os seus olhos estavam fitos na janela, olhando para fora
            cinza  que  aos  poucos  o  ia  esvaziando  tal  e  qual  o  seu   e para o prédio que, já velho, se perfilava na sua frente há
            coração, a sua razão e todo o seu ser.             mais de 1 ano. Ambos sabíamos que a mudança daquela
               Em  todos  os  movimentos  que  fez  sentia-se  sempre   casa era inevitável há muito, mas por força de uma dia-
            presente a dicotomia da vida. Se por um lado todo ele era   léctica nunca por mim compreendida, fora também sendo
            energia  e  decisão  nos  seus  gestos  e  nas  suas  atitudes,  o   sucessivamente adiada como que algo pudesse acontecer
            homem  dono  do  seu  destino,  intrépido  e  a  saber  o  que   que o fizesse evitar. Há muito que o exorcizar das recor-
            quer,  por  outro  adivinhava-se  nele  uma  vulnerabilidade   dações e o enterrar definitivamente um passado recente
            incrível, qual menino perdido sem saber para onde vai e   doloroso era obrigatório para a recuperação emocional de
            porque vai. Estava mais trémulo. Muito mais do que ha-  um espírito que, sendo brilhante desde muito novo, não
            bitualmente quando eu lhe dizia que aquilo era do tabaco.   conseguiu resistir com o desgosto. No dia anterior, ainda
            Mas agora não era, ambos o sabíamos, mas cada um à sua   livre da emoção que hoje estava a sentir, tinha-me confi-
            maneira  procurou  esconder  o  que  se  passava  nas  nossas   denciado que da casa, e para além da recordação do que
            cabeças,  com  medo  de  tocarmos  em  algo  que  pudesse   dela vivera,o que mais o incomodava era ter aquele prédio
            descambar naquilo que não queríamos.               na sua frente. Que lhe faltava espaço e que sem espaço
               Eram 4 da tarde de um dia de finais de Julho. O pe-  ele não vivia bem. Compreendi-o bem, talvez como nun-
            queno apartamento abafava de calor e o que parecia era   ca o tivesse conseguido. Enquanto viveu comigo, na nossa



       16  Boletim da associação dos PuPilos do exército
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