Page 16 - Boletim APE_222
P. 16
cróNicas
ANTóNio BArroSo
19460120
pequeno, como se fizéssemos parte duma incomensurável
vida que não ousamos imaginar. Talvez o universo do
estado de espírito nosso conhecimento não seja mais que o equivalente a um
glóbulo correndo no labiríntico conjunto da seiva dum ser
diferente. Talvez a nossa mente tenha estiolado na con-
templação do umbigo e os filamentos cerebrais se recusem
oje, estou triste, profundamente triste a fazer mais horas extraordinárias.
HSinto-me miserável, apático, abúlico, neurasténico. O homem nasce para morrer. É uma lei imutável.
Não sei se é do dia cinzento que me agonia, da contí- Como diz o fado, é o seu destino.
nua e monótona chuva que persiste em bater na janela do Dito desta maneira, simples e objectiva, parece apenas
meu escritório, ou da penumbra em que, desinteressada- um fim, mas acaba também por ser uma consequência. A
mente, me deixo envolver. Fico quedo, sentado à secretá- sua existência, como a de todos os outros seres vivos, se-
ria, e apenas me debruço sobre o computador para alinha- gundo a lógica de Darwin, limita-se a promover a conti-
var alguns pensamentos, por demais polémicos. nuidade da espécie. Assim, não forma sentido que lhe
Não sei da razão, nem procuro sabê-la. Que importa? tenha sido permitido desenvolver o que, pomposamente,
No entanto, parece que atingi o zero absoluto. A palavra se apelida de inteligência (só explicada pela teoria da
não surge com a mesma fluidez, a frase não se forma com evolução das espécies, do mesmo cientista), mas que não
o desejo íntimo, a ideia não ocorre como um prazer sempre domina a razão com lógica, não aceita princípios, sem
renovado e o verso enclausurou-se num passado longínquo. hipocrisia, não respeita vontades construídas. É uma lei
O monitor branco, apenas com duas ou três palavras escri- sim, uma lei de cumprimento rígido em que não há lugar
tas pela impaciência, reflecte a total ausência de vontade, para amnistias ou redução de pena e onde, afinal, a inte-
o conformismo da indolência, o vazio, o tédio, o nada. ligência é um luxo para ocupar os momentos de ócio. E o
É verdade. Estou triste, e não sei porquê. homo sapiens, todo ufano do seu brinquedo, pensa ser o
Dou, então, por mim, a pensar no grande mistério da dono da lógica e lança-se ao assalto da fortaleza seguinte.
vida, como se me dominasse uma crise existencial, a filo- É um guerreiro sem contendor.
sofar comigo próprio, como se fosse um interlocutor váli- Poderia ainda acrescentar, batendo com a mão no pei-
do, mas mudo e extático, enquanto os olhos fechados to, que fomos feitos à imagem e semelhança de Deus, mas
contemplam horizontes sem fim, onde o simbolismo do não creio que Ele seja assim tão feio, tão mísero, tão mau
azul celeste dá lugar ao tom, carregado e plúmbeo, com e tão mesquinho. Aceito, no entanto, a sua existência sem
que o dia me acordou. qualquer explicação, por convicção íntima e como dogma
Apenas tento ocupar momentos de quietude amargu- que não pretendo analisar, assim como na existência da
rada, na busca vã e inglória de encontrar as verdadeiras alma, como reflexo de algo mais profundo.
soluções duma equação, cuja incógnita jamais será desco- Onde se conjuga, então, a teologia com a ciência?
berta, por mais cálculos que se tentem, manter os olhos Em que ponto se cruzam as suas coordenadas?
cerrados na obscuridade que me rodeia, sentir todo o peso Em que cadinho se amalgamam as suas conclusões?
do mundo sobre os meus ombros curvados e deixar a Contraditório? Confirma-se, hoje estou mesmo neura!
mente rolar por temas algo complexos. Este estado de espírito traz-me à memória cenas e si-
E as perguntas surgem, subitamente, galopando em tuações passadas, como um caleidoscópio que muda,
desenfreada, umas, vindo sub-reptícias, outras, infiltrando- constantemente, de forma, ou um filme mudo que se re-
-se, com malícia, ainda outras, entrelaçando-se em premis- pete. Sem réplica que contrarie as premissas que vou
sas que a razão não consegue destrinçar e que a lógica não construindo, congeminam-se perguntas, ou na forma de
domina. É como uma partida que se prega a alguém, sem dúvida permanente, ou implicando já uma certeza interior,
a vantagem de ficarmos de fora para nos rirmos do resul- ou ainda num modo interrogativo, quase desnecessário,
tado. por tão evidente a resposta.
Imagino-me uma muito ínfima fracção dum quark onde Depois, formulam-se algumas perguntas. E a resposta
o numerador é a unidade, sendo o denominador um nú- surge com novas perguntas.
mero quase infinito elevado a uma alta potência, num Teria valido a pena?
mundo em que a inteligência, por ausência de comparações Revejo aquele impetuoso, indómito e destemido chefe
válidas, se recusa a aceitar o infinitamente grande e não que, nos seus tempos de poder e glória, era exímio em
compreende que apenas possamos ser o infinitamente lançar ordens inquestionáveis, punir com severidade,
14 Boletim da associação dos PuPilos do exército