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crónicas e artigos de opinião




       JACinto Rego de AlmeidA
       1952.0049
                                       As gerações e a culpa

       O      mou Almada Negreiros, em Dezembro de 1917.      nado cubano.
      ”       h portugueses da minha geração, nascidos…”, procla-  se já não o disse: Eu não tenho culpa nenhuma de me ter tor-

                A geração de que faço parte em Portugal nasceu
                                                                 Há dias, ao balcão à espera de mesa num restaurante de
       durante a II Guerra Mundial. Aprendeu a dizer “encarnado” em  Lisboa, estavam uma mulher e um homem, relativamente jo-
       vez de “vermelho” e é uma geração filha de Salazar, da dita-  vens, da geração a seguir à minha, portanto, pensei, filhos da
       dura  do  Estado  Novo  e  da  guerra  colonial,  mas  também  de  Revolução de 25 de Abril, da União Europeia, da Internet, do
       Elvis Presley, dos Beatles, de John Kennedy, de Marilyn Monroe,  telemóvel, do 11 de Setembro, do U-2 e… às tantas ela disse
       de (quem não se emocionou com os revolucionários cubanos)  para ele: “Eu não tenho culpa nenhuma de ser portuguesa…”.
       Che Guevara e Fidel Castro e de alguns mais que não me ocor-  No decorrer da conversa referiram-se ao deficit público, ao en-
       rem. Salazar, Elvis, Marilyn Monroe, Kennedy e Che Guevara,  dividamento  público  e  privado,  ao  caos  da  justiça,  à  falta  de
       morreram. O Estado Novo foi derrubado e a guerra colonial che-  seriedade da classe política e ao fim das ilusões da sua geração
       gou ao fim. Mantém-se Fidel. Há pouco mais de um mês, vi o  em Portugal. Pelas notícias da imprensa damos conta do en-
       seu ressurgimento político, na televisão, a responder perguntas  tusiasmo  e  esperança  das  actuais  gerações  de  alguns  países
       e esclarecer os deputados da Assembleia Popular de Cuba. Foi  como a China e o Brasil, por exemplo, pensei. Terão essas notí-
       um episódio constrangedor com o velho líder a repetir “verda-  cias fundamento? Quando essas gerações saírem de cena terão
       des” de uma época que parece remota e a ser calorosamente  visto confirmadas as suas actuais esperanças? Ou continuarão
       aplaudido ao mais leve gesto por toda a Assembleia (sem ex-  a dizer: “Eu não tenho culpa nenhuma de ser…”? Afinal, quem
       cepção). Patético. Ao vê-lo, a minha memória foi assaltada por  é culpado?
       Reinaldo Buellas, um contemporâneo da geração Fidel Castro e   Gerações e culpa, questões que atravessam os tempos des-
       uma conhecida personagem de Havana.                    de que o homem é homem.
          Todas as manhãs ele atravessa, em passos lentos, a Plaza de
       Armas com um charuto na mão. Reinaldo Buellas tem 88 anos,
       barba branca e boina à Che Guevara. Senta-se no passeio em
       frente ao Palácio Municipal à espera da chegada dos turistas.
       Muitos de nós já vimos a sua fotografia em agências de turismo
       ou em capas de livros de viagem como o Lonely Planet. Buellas
       recebe uma reforma de dezasseis euros por mês pelas déca-
       das de trabalho nas marcenarias do Estado e uma cesta básica
       com alimentos e produtos de higiene. Ele não é cubano e está
       conformado com a sua participação na paisagem de Havana.
       Nasceu nas Ilhas Canárias e com oito anos embarcou para Cuba
       com o seu avô que iria trabalhar nas plantações de tabaco. Du-
       rante a II Guerra Mundial – altura em que nasceu a geração de
       que faço parte – integrou as tropas cubanas que combateram
       o nazismo ao lado do exército norte-americano. Regressou em
       1946. Juntou-se à guerrilha que combatia Fulgêncio Batista na
       coluna comandada pelo lendário Camilo Cienfuegos até à to-
       mada do poder por Fidel Castro em 1959. Terras da sua família
       foram nacionalizadas pelo novo poder assim como hotéis, fa-
       zendas e o parque industrial do país. Então Buellas casou-se,
       teve dois filhos e tornou-se marceneiro. Agora ele levanta o cha-
       ruto, ajeita a boina e posa para turistas que deixarão uma gorjeta
       (no mínimo um peso cubano) e levarão as suas fotografias para
       longe. Levanta-se e faz um pequeno comício: “O governo de
       Batista sequestrou, matou e torturou cubanos. Usámos armas
       para impor o socialismo e acabar com o sofrimento do povo”.
       Cansado, volta a sentar-se no passeio. É o avô revolucionário e
       imagina-se mais famoso fora de Cuba do que o comandante
       Fidel. Vez ou outra sobra-lhe dinheiro para comprar uma lem-
       brança para as duas netas e os seis bisnetos.
          “Eu não tenho culpa nenhuma de ser português…”, escre-
       veu Almada Negreiros, filho da primeira república, da I Grande
       Guerra, da travessia do Atlântico por Gago Coutinho e Sacadura
       Cabral, uma geração anterior à de Buellas que poderia ter dito,   Reinaldo Buellas


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