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evocações
Férias de Verão
António bARRoSo
1946.0120
oje em dia, decidir passar um tempo de férias em Mada- empregada que delas tomava conta. Delicadas diligências diplo-
gáscar, Maldivas, Cuba ou nordeste brasileiro, é o mes- máticas levadas a cabo pelo Rios, ajudado pela mãe (ou vice
Hmo que, no meu tempo, sonhar veranear uns dias pelas versa), levaram a que a senhora nos cedesse a garagem para
praias de Oeiras, Carcavelos, Trafaria ou Costa da Caparica, o alojamento colectivo. Resolvido este magno problema logístico,
que, para uns tesos como nós éramos, parecia até nem haver bem, meus amigos, resta-me acrescentar que, naquela altura,
possibilidade de realizar tão louco devaneio. a sardinha era barata, a batata estava ao preço da chuva, e o
No entanto, contrariando esse ancestral derrotismo portu- azeite vinha da despensa da senhora, aliás como o açúcar, o sal
guês e escudados no “Querer é Poder” que, há anos, vínha- e outros condimentos, enfim, pequenas coisas sem significado
mos assimilando, um grupo de cinco pré finalistas, deliberámos de maior.
passar quinze dias de férias na Costa da Caparica, no final do Nos quase quinze dias de veraneio, com o bronze e o ri-
ano lectivo (Julho de 1952, se a memória não me falha). Eram panço lutando pela primazia, passávamos o serão no passeio
eles, a saber, para além de mim, 120 - Tiago, o 67 - Magro, o com um grupo que fomos conhecendo, feminino e masculino,
256 - Costa, o 290 - Rios e o 336 - Rodrigues, sendo o Costa calcorreando a estrada que seguia em direcção à Trafaria, em
o tesoureiro do grupo. alegres conversas de jovens adolescentes. Depois era o regres-
Formulado o desejo, era necessário desenvolver acções que so à suite, com a noite repleta de sonhos sem limites.
pudessem despejar no cofre vazio, algumas moedas de espe- A dada altura, sucedeu o inevitável, o desastre, a tragédia, o
rança. Assim, ficou assente em assembleia magna de que se pânico, o fim - a caixa estava vazia, completamente seca, oca,
não lavrou acta porque o papel era dispendioso, que se esta- esventrada. Por isso, o regresso, no dia seguinte, impunha-se,
beleceria uma quota individual de vinte e cinco tostões sema- era ponto assente, inquestionável, categórico, mas colocava-se
nais e se criaria uma empresa de venda de bolos, chocolates, o problema do almoço, dilema mais difícil de solucionar que
rebuçados, tabaco, etc., sem registo o mc2 de Einstein. Um do
na respectiva conservatória, nem grupo, já não me recordo
contabilidade organizada segun- quem, abichou uma senha
do as normas do POC, que nessa para a FNAT (hoje Inatel) de
altura, não existia o IRC, se desco- alguém que precisava de ir
nhecia o IVA e nem se ouvia falar a Lisboa e, portanto, não al-
na ASAE. moçava, e que lhe ofereceu
Não é caso para referir da di- a senha. Os outros, delibera-
ficuldade que tive para arranjar, ram formar dois grupos e...
semanalmente, a tal moedinha fosse o que Deus quisesse.
prateada que dava pelo nome No dia seguinte, Domin-
vinte e cinco tostões. Cada en- go, eu e o Rios encaminhá-
trega representava o alívio duma mo-nos para o vasto pinhal,
quota realizada e o início duma onde grupos de famílias
dor de cabeça para conseguir a estendiam os fartos farnéis
próxima, mas por vezes, quando para acompanhamento
menos se espera, o destino dá- das actividades dum apra-
nos uma pequena ajuda. zível dia de praia. A pouca
Porque estava aflito em mate- distância, deparámos com
mática, um puto, do segundo ou Praia da Costa da Caparica, anos 50 uma senhora acompanha-
terceiro ano, pediu-me para lhe da dum puto dos seus oito
dar umas explicações, o que fazia, diariamente, naquela hora e anos, que espalhava, numa alva toalha, pasteis, sandes, bolos e
meia de estudo depois do jantar. Ou porque o miúdo assimilava outras iguarias que faziam saltar os olhos das órbitas, enquan-
bem, ou porque o explicador era bom, modéstia à parte, o que to o filho ia dando uns toques numa bola de borracha. Daí a
é certo é que as notas começaram a subir. estarmos a jogar à bola com o puto, foi um instante, e quando
Um dia, no final do período, fui chamado ao gabinete do a senhora chamou para almoçar, muito delicadamente, pergun-
oficial de dia, e no caminho, ia ruminando, com os meus bo- tou se éramos servidos. Confesso que fiquei um pouco emba-
tões, no que teria sido apanhado desta vez, e qual a justificação raçado, mas fui salvo pelo Rios que, com enorme à vontade,
mais adequada à situação, dei de caras com o puto, que me respondeu, de pronto: - Minha senhora, à falta de apetite, só se
apresentou o pai que se encontrava a seu lado, todo sorridente. formos tentados pela apresentação! - e, logo de seguida, aboca-
Com os efusivos agradecimentos do senhor, surgiu uma nota nhou um apetitoso pastel de bacalhau.
de cinquenta escudos a que ainda me fiz rogado, embora com Não foi um almoço, é certo, mas sempre deu para acalmar
pouca convicção, e que, tocada, com ternura, até parecia veludo um pouco aquele “ratinho” que, dentro de nós, não parava de
acariciando uma mão carente. Conclusão, várias semanas foram reclamar. Já não sei o que se passou com o outro grupo. Possi-
liquidadas duma assentada e, resta acrescentar que, lá para o velmente, o “ratinho” ficou em jejum.
fim do segundo período, uma “irmã gémea” voltou a aparecer, Sempre que recordo esta aventura onde, por vezes, a fantasia
para satisfação dos compromissos assumidos. poderá preencher as lacunas provocadas pela esclerose, surge-
No fim do ano, tínhamos, a muito custo, amealhado oito- me, como que passando num ecrã gigante, a noite da véspera
centos ou novecentos escudos, o que, em bom português, nem da partida, passeando ao longo do alcatrão, com a moça que
dava para mandar cantar um cego. No entanto, novamente o me costumava acompanhar, naquele grupo com que fizéramos
destino veio em nosso auxílio. amizade, muito agarrada a mim, e a cantar-me, ao ouvido:
Uma senhora, amiga da mãe do Rios, alugou uma vivenda - La ultima noche que passé contigo!...
na Costa da Caparica para ela, duas filhas pequenas e uma
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