Page 14 - Boletim APE_219
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crónicas e artigos de opinião
eRnAni bAlSA
1960.0300
escrever coisa nenhuma
se me permitem, come- folha sem nada escrito...
çaria esta minha segunda às vezes, basta um pequeno pormenor para nos arran-
colaboração no nosso bo- car deste estado inerte dos dedos flutuando, ainda sem
letim com uma declaração o derradeiro sinal para atacarmos a construção da escrita
de interesse, que julgo por cima do teclado. uma pequena ideia, um acaso, um
importante confessar e es- episódio, na altura sem importância, mas que a maravi-
clarecer. escrever, é essen- lha do pensamento nos fez torná-lo num tema que de
cialmente um exercício de repente toma conta de nós. no meu caso, tanto posso ter
liberdade, porque cada um uma ideia já vagamente construída, como partir do vazio
de nós é, no seu mais pro- absoluto.
fundo ser, um ser livre. só esta urgência de escrever hoje e imperetívelmente até
as condicionantes e contingências da vida permitem que amanhã, ter este desenho de palavras pronto para enviar,
cada um de nós, em determinadas circunstâncias, vá fi- empurra-me inexoravelmente para o confronto com o tal
cando refém de maiores ou menores amarras que lhe abismo de que falava, sendo portanto inadiável tomar a
limitam esse exercício. não é, no actual contexto, o meu atitude que se impõe... sinto desfilar dentro de mim uma
caso. o facto de escrever neste nosso boletim não tem miríade de temas que poderia aqui abordar. hoje, por
que me amarrar a nenhum tema hermeticamente “pilóni- exemplo, aconteceu uma greve geral e poderia ser interes-
co”, uma vez que sou de opinião que há necessidade de sante ir por aí, sem considerções partidárias, mas apenas
abrir cada vez mais estes espaços a outras áreas, sem nos pela vertente política e social. poderia ser, mas no entanto,
fecharmos num rosário de recordações, elegias e recons- não querendo ferir susceptibilidades de quem quer que
trução do passado. não condeno seja, num espaço teoricamente
tal prática, que faz também parte «o estigma da página em branco isento e apartidário, acho melhor
daquilo que nos alimenta o ego não ir por aí. há quem considere
de filhos duma casa que todos é, mais do que um desafio, por a greve, em si, um tema e uma
amamos, respeitamos e quere- arma ideológica, no mau sentido,
mos ver cada vez mais dignifica- vezes, uma angústia, ou então, e a própria ideologia uma tomada
da, mas há espaço para tudo e o desaguar dum impulso de partido, quando ela é apenas a
essa vertente já está por demais ciência da formação de ideias...
servida nestas páginas. deixem- incontrolável» acho que me resta portanto
me então dar asas à imaginação, falar de nada. esse anátema da
à livre expressão das minhas alegrias e preocupações, das dissertação, da dialéctica da coisa nenhuma, do discurso
minhas elucubrações sobre o que quer que seja que me do absurdo. falar da ausência ou inexistência daquilo que
atice a inspiração, se a tiver... deveria ser um tema, pode ser um sofisma para disfarçar
chego aqui a esta página em branco na véspera da uma inspiração também ela ausente, mas poderá tam-
data limite para enviar este meu contributo. para quem bém não deixar de ser um desafio. porque para aqui se
escreve, o estigma da página em branco é, mais do que chegar, já eu gastei duas páginas de branco, que ainda há
um desafio, por vezes, uma angústia, ou então, o desaguar pouco eram nada, o tal abismo em que eu me arriscava a
dum impulso incontrolável que se sublima num enorme cair e qualquer um pode imaginar o que será despenhar-
alívio. há mesmo quem diga que o também possível ter- se num mar de branco, que é a ausência da própria côr...
ror deste espaço em branco, como que um abismo de quando existe côr, existe profundidade, dimensão. quan-
ausência que tende a nos intimidar, só se pode resolver do apenas o branco existe, o que existe para além do
indo em frente, sem pensar muito naquilo que vão ser as branco é o desconhecido que não nem dimensão nem
primeiras letras, as primeiras palavras, a primeira frase, a volume ou conteúdo. é coisa nenhuma à procura de al-
primeira ideia ainda por construir... como dizia Saramago, guma coisa...
e para quem, como eu e muitos outros, hoje em dia subs- por isso, escrever sobre coisa nenhuma não é assim
tituiram o doce e sensual deslizar do aparo, da esfera ou tanto um exercício sobre o nada, mas antes o mergulhar
da ponta do instrumento de escrita, pelo ritmo, também numa procura constante que nunca se consome nem ter-
ele inspirador do matraquear dum teclado, o que o chama mina. é escrever sobre o nosso eterno desconhecimento,
à escrita, é o incansável e hipnótico piscar do cursor num com o conhecimento que em cada momento temos das
ecran de computador. há portanto imensas maneiras de coisas, das pessoas, do mundo. quão profundo e inspira-
ultrapassar esta angústia do vazio e da brancura duma dor é pois o nada ou a coisa nenhuma, meus amigos...
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