Page 62 - Boletim APE_229
P. 62
CRÓNICAS
os mistÉRios de ammaia:
Cidade Romana no aLto aLenteJo
Jacinto Rego de almeida | 19520049
nquanto apanhávamos cerejas e olhávamos as pegadas dos javalis, Pedras da antiga cidade romana serviram para edificar a santa sé de
EAntónio Soares da Fonseca disse, olhando-me fixamente: “O impe- Portalegre e o mosteiro da Virgem Nossa Senhora da Conceição na
rador romano Cláudio era casado com Messalina e tiveram um filho, a mesma cidade e o portal de cantaria de uma das entradas da cidade foi
quem foi dado o nome de Britânico. Nero, parente de Cláudio, ofereceu- integrado nas muralhas de Castelo de Vide em 1710. Em meados do
-lhe um banquete, no ano 55, e envenenou-o, tornando-se depois o século XIX, o espanhol José de Viu, relatou que mais de vinte estátuas
imperador que todos conhecemos. Como é que a descabeçada estátua “de muito grande mérito” saíram desta cidade romana para Inglaterra.
romana, em mármore, representando o jovem Britânico aparece na casa Os vestígios eram conhecidos como “cidade morta da Aramenha”. Só
de José Régio, aqui em Portalegre?” Estava calor, dei de ombros e não em 1949, as ruínas foram classificadas como Monumento Nacional e
respondi. Uma pequena cobra passou por entre as ervas, uma ou outra mais recentemente o sítio romano tornou-se propriedade de pessoas
águia voava alto. Voltámos para casa. afortunadas, “de alma ciosa e inteligência esconsa”. Apesar disso, a
Conheci as terras marginadas pelo bucólico rio Sever e as ruínas, EN359 destruiu uma parte significativa das termas romanas. Praça
ou melhor os vestígios da antiga cidade romana de Ammaia e os misté- pública, provável teatro, fórum, templo, termas e banhos públicos,
rios que a rodeiam, pela mão do meu amigo Fonseca. Amigo há mais torres, muralha, ponte, que davam prestígio a esta cidade romana,
de sessenta anos, colega de curso no Pilão, o 324, porta bandeira, bom passaram a ser objecto de escavações arqueológicas, iniciadas em 1994
atleta, meu camarada de curso na Escola Naval, depois oficial da Arma- com o surgimento da Fundação Cidade de Ammaia, mas ainda estão,
da, sempre bom aluno e pronto para socorrer os camaradas. Fez comis- em grande parte, soterradas.
são numa fragata, em Moçambique, comandada por Mello Breyner, um Fonseca levou-me também a visitar, do lado espanhol, a ponte
oficial que frequentava a elite social da época. Pouco depois de regres- romana de Alcantara, sobre o rio Tejo, a cerca de dez quilómetros da
sar de África, alguns camaradas nossos desertaram, a guerra não tinha fronteira de Portugal. Uma obra grandiosa e muito bem conservada. Ele
fim, e Fonseca, jovem oficial, fartou-se, partiu para o exílio em Paris. Foi estava a pensar em tempos muito antigos: “Certamente passaram por
companheiro de Manuel Villaverde Cabral, João Freire, do militante aqui tropas (legionários capazes de tudo, pensei), material de constru-
anarquista Jorge Valadas e de Vitorino, entre outros, e mais tarde exilou- ção e população civil, vindos dos confins do império romano para
-se no Brasil, onde estivemos juntos até à Revolução de 25 de Abril. (O Mérida e Ammaia, não achas?”, perguntou-me enquanto admirávamos
25 de Abril que fez recentemente 39 anos, como o tempo passa…) a ponte. “Acho”, respondi. No caminho de volta almoçámos carne de
Reformado, vive numa quinta em área protegida na Serra de S. Mamede. javali e bifes de veado selvagem, bem temperados. Passámos por Va-
Adiante. lencia de Alcantara, Marvão, Portalegre e mudámos o rumo da conver-
O Fonseca levou-me a visitar Ammaia (localizada em S. Salvador sa: as próximas eleições autárquicas, a crise, “a União Europeia já viveu
de Aramenha, no concelho de Marvão) que, estima-se, terá chegado a dias melhores, o entusiasmo da criação do euro, lembras-te?”. Poucos
ter cinco mil habitantes e tem uma das suas imponentes portas voltada quilómetros depois, enquanto eu dormitava, o Fonseca voltou à carga:
para Mérida, talvez a mais importante cidade do império romano na “Achas mesmo que a estátua em casa de José Régio representa o jovem
Península Ibérica. Elevada a civitas por volta do ano 44 ou 45 d.C., Britânico, filho do imperador Cláudio?”. “Acho, tenho quase a certeza.
tendo obtido estatuto de municipium ainda durante o século I, Ammaia Mas como é que ela foi parar a casa do José Régio? E onde é que está
foi abandonada de um momento para o outro. Fruto da queda do im- a cabeça da estátua? Em Inglaterra? E porque é que Ammaia foi aban-
pério? Na sequência de algum cataclismo ambiental? O mouro Rasis, donada pela sua população de um dia para o outro? Estou a achar que
no século X refere-se à “medina Ammaia arruinada”, objecto de saque. não vale a pena conhecer estes segredos, é melhor ficarmos com o
fascínio dos enigmas”, respondi. O Fonseca calou-se e pouco depois
de entrarmos em sua casa, voltámos a sair para apanhar cerejas e ver
as pegadas dos javalis. Estes animais já no tempo dos romanos anda-
vam por aqui a comer raízes das colheitas dos habitantes de Ammaia,
e conhecem como ninguém estas terras repletas de memórias, sonhos
e desgraças de homens, pensei. Século após século, os javalis a saírem
das tocas pela calada da noite, a comer raízes, indiferentes a tudo,
indiferentes aos romanos, às traições, às estátuas com cabeça e sem
cabeça, os javalis sempre a farejarem, talvez também indiferentes à
construção e abandono de Ammaia, desinteressados a respeito das
próximas eleições autárquicas que tanto preocupam os políticos, sécu-
lo após século, os javalis indiferentes a tudo, penso, mas a preocupa-
rem o meu velho amigo António Soares da Fonseca…
60 BOLETIM DA ASSOCIAÇÃO DOS PUPILOS DO EXÉRCITO