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CRÓNICAS


           os mistÉRios de ammaia:


           Cidade Romana no aLto aLenteJo



           Jacinto Rego de almeida | 19520049



              nquanto apanhávamos cerejas e olhávamos as pegadas dos javalis,   Pedras da antiga cidade romana serviram para edificar a santa sé de
           EAntónio Soares da Fonseca disse, olhando-me fixamente: “O impe-  Portalegre e o mosteiro da Virgem Nossa Senhora da Conceição na
           rador romano Cláudio era casado com Messalina e tiveram um filho, a   mesma cidade e o portal de cantaria de uma das entradas da cidade foi
           quem foi dado o nome de Britânico. Nero, parente de Cláudio, ofereceu-   integrado nas muralhas de Castelo de Vide em 1710. Em meados do
           -lhe um banquete, no ano 55, e envenenou-o, tornando-se depois o   século XIX, o espanhol José de Viu, relatou que mais de vinte estátuas
           imperador que todos conhecemos. Como é que a descabeçada estátua   “de muito grande mérito” saíram desta cidade romana para Inglaterra.
           romana, em mármore, representando o jovem Britânico aparece na casa   Os vestígios eram conhecidos como “cidade morta da Aramenha”. Só
           de José Régio, aqui em Portalegre?” Estava calor, dei de ombros e não   em 1949, as ruínas foram classificadas como Monumento Nacional e
           respondi. Uma pequena cobra passou por entre as ervas, uma ou outra   mais recentemente o sítio romano tornou-se propriedade de pessoas
           águia voava alto. Voltámos para casa.              afortunadas, “de alma ciosa e inteligência esconsa”. Apesar disso, a
              Conheci as terras marginadas pelo bucólico rio Sever e as ruínas,   EN359  destruiu  uma  parte  significativa  das  termas  romanas.  Praça
           ou melhor os vestígios da antiga cidade romana de Ammaia e os misté-  pública,  provável  teatro,  fórum,  templo,  termas  e  banhos  públicos,
           rios que a rodeiam, pela mão do meu amigo Fonseca. Amigo há mais   torres,  muralha,  ponte,  que  davam  prestígio  a  esta  cidade  romana,
           de sessenta anos, colega de curso no Pilão, o 324, porta bandeira, bom   passaram a ser objecto de escavações arqueológicas, iniciadas em 1994
           atleta, meu camarada de curso na Escola Naval, depois oficial da Arma-  com o surgimento da Fundação Cidade de Ammaia, mas ainda estão,
           da, sempre bom aluno e pronto para socorrer os camaradas. Fez comis-  em grande parte, soterradas.
           são numa fragata, em Moçambique, comandada por Mello Breyner, um   Fonseca  levou-me  também  a  visitar,  do  lado  espanhol,  a  ponte
           oficial que frequentava a elite social da época. Pouco depois de regres-  romana de Alcantara, sobre o rio Tejo, a cerca de dez quilómetros da
           sar de África, alguns camaradas nossos desertaram, a guerra não tinha   fronteira de Portugal. Uma obra grandiosa e muito bem conservada. Ele
           fim, e Fonseca, jovem oficial, fartou-se, partiu para o exílio em Paris. Foi   estava a pensar em tempos muito antigos: “Certamente passaram por
           companheiro  de  Manuel  Villaverde  Cabral,  João  Freire,  do  militante   aqui tropas (legionários capazes de tudo, pensei), material de constru-
           anarquista Jorge Valadas e de Vitorino, entre outros, e mais tarde exilou-   ção  e  população  civil,  vindos  dos  confins  do  império  romano  para
           -se no Brasil, onde estivemos juntos até à Revolução de 25 de Abril. (O   Mérida e Ammaia, não achas?”, perguntou-me enquanto admirávamos
           25  de  Abril  que  fez  recentemente  39  anos,  como  o  tempo  passa…)   a ponte. “Acho”, respondi. No caminho de volta almoçámos carne de
           Reformado, vive numa quinta em área protegida na Serra de S. Mamede.   javali e bifes de veado selvagem, bem temperados. Passámos por Va-
              Adiante.                                        lencia de Alcantara, Marvão, Portalegre e mudámos o rumo da conver-
              O Fonseca levou-me a visitar Ammaia (localizada em S. Salvador   sa: as próximas eleições autárquicas, a crise, “a União Europeia já viveu
           de Aramenha, no concelho de Marvão) que, estima-se, terá chegado a   dias melhores, o entusiasmo da criação do euro, lembras-te?”. Poucos
           ter cinco mil habitantes e tem uma das suas imponentes portas voltada   quilómetros depois, enquanto eu dormitava, o Fonseca voltou à carga:
           para Mérida, talvez a mais importante cidade do império romano na   “Achas mesmo que a estátua em casa de José Régio representa o jovem
           Península Ibérica. Elevada a civitas por volta do ano 44 ou 45 d.C.,   Britânico, filho do imperador Cláudio?”. “Acho, tenho quase a certeza.
           tendo obtido estatuto de municipium ainda durante o século I, Ammaia   Mas como é que ela foi parar a casa do José Régio? E onde é que está
           foi abandonada de um momento para o outro. Fruto da queda do im-  a cabeça da estátua? Em Inglaterra? E porque é que Ammaia foi aban-
           pério? Na sequência de algum cataclismo ambiental? O mouro Rasis,   donada pela sua população de um dia para o outro? Estou a achar que
           no século X refere-se à “medina Ammaia arruinada”, objecto de saque.   não vale a pena conhecer estes segredos, é melhor ficarmos com o
                                                              fascínio dos enigmas”, respondi. O Fonseca calou-se e pouco depois
                                                              de entrarmos em sua casa, voltámos a sair para apanhar cerejas e ver
                                                              as pegadas dos javalis. Estes animais já no tempo dos romanos anda-
                                                              vam por aqui a comer raízes das colheitas dos habitantes de Ammaia,
                                                              e conhecem como ninguém estas terras repletas de memórias, sonhos
                                                              e desgraças de homens, pensei. Século após século, os javalis a saírem
                                                              das  tocas  pela  calada  da  noite,  a  comer  raízes,  indiferentes  a  tudo,
                                                              indiferentes aos romanos, às traições, às estátuas com cabeça e sem
                                                              cabeça,  os  javalis  sempre  a  farejarem,  talvez  também  indiferentes  à
                                                              construção  e  abandono  de  Ammaia,  desinteressados  a  respeito  das
                                                              próximas eleições autárquicas que tanto preocupam os políticos, sécu-
                                                              lo após século, os javalis indiferentes a tudo, penso, mas a preocupa-
                                                              rem o meu velho amigo António Soares da Fonseca…


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