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CRÓNICAS


           o homem


           (ReFLeXÕes de Um CidadÃo ComUm)


           Rui Cabral telo | 19480265




              homem deambulava pela rua de mãos nos bolsos observando os   rados, procurava realizar serviços para organizações não lucrativas como
           O  passantes tentando descobrir os pensamentos de cada um através   clubes e associações de que fazia parte o que lhe transmitia alguma
           das expressões e do porte de cada qual. Seria que tinham os mesmos   sensação de utilidade. Estava no último terço da sua vida e sabia já não
           anseios que ele? Seria que gostavam das mesmas coisas?  lhe restar muito tempo para se afirmar sobre o que fosse.
              Seriam cultos? Teriam instrução? E teriam gosto em aprender, em   Também, infelizmente, não soubera gerir os parcos proventos que
           saberem coisas? Ele tinha essa ânsia, essa vontade, esse gosto, mas   ganhara de modo a poder agora usufruir de um pouco mais de sosse-
           do que lhe servia isso, se o facto de gostar de saber, de aprender, não   go económico. Infelizmente, o seu país nunca fora capaz de garantir aos
           lhe dava qualquer poder, quer económico quer de estatuto, continuava   que o serviram com risco das próprias vidas, o suficiente para poderem
           o mesmo, sem dinheiro, sem poder de compra, sem proporcionar aos   ter uma velhice calma e serena até ao fim dos seus dias. Mas, também
           seus aquela vida que gostariam de ter, de ver espectáculos, de sair e   sabia que muitos estavam em circunstâncias bem piores e a história
           frequentar bons restaurantes, de vestir e comer bem sem grande traba-  mostrava que sempre fora assim.
           lho e sem esforço. Que lhe servia saber discutir meia dúzia de assuntos,   Passou junto de uma igreja com os crentes saindo da última mis-
           acabava tornando-se chato contraditando quase tudo o que os outros   sa talvez convencidos de que estavam mais protegidos e acompanhados
           diziam, as pessoas, falam de tudo e sobre tudo pela rama cometendo   por um deus que faziam protector e pessoal, como se não houvesse
           montes de erros, mas não gostam que lhos emendem e ele não era   neste mundo mais nada com que se preocupar. A fé serve para isso
           capaz de se conter e ainda por cima era um ateu convicto gostando de   mesmo, é uma forma dos que pouco têm se convençam que vão ser
           conhecer e entender os porquês e princípios das religiões, coisa que   ajudados  a  ter  mais  e  dos  que  muito  têm  fiquem  convencidos  que
           os crentes normalmente não fazem nem procuram esclarecer-se estan-  nunca nada lhes faltará e os seus proventos e patrimónios aumentarão
           do-se nas tintas para os quês e porquês bastando-lhes a fé que lhes   e ninguém nada lhes tire. Poucos são os que nada pedem para si ou
           incutiram desde o berço não se perguntando se todas as lengalengas   que orem pelos outros que sofrem com a ganância dos que já tudo
           que papagueavam tinham algum fundamento e serventia. Olhando os   possuem mas que ainda mais querem, sugando-lhes o esforço a men-
           seres andantes de ar macambúzio deslocando-se de e para lado nenhum,   te e a vontade.
           perguntava-se se teriam dúvidas sobre o que pensam acreditar ou se   A maioria dos seres mortais constrói o seu mundo com fronteiras
           não acreditando também duvidariam da descrença. Naturalmente sim   demasiado curtas e o que está para lá não lhes interessa por não lhes
           mas talvez não se preocupassem muito e o mais certo seria a porcaria   dizer respeito. Mas a humanidade é imensa e a maioria sofredora e
           de vida que levavam e o esforço que faziam para sobreviverem não lhes   despojada de quase tudo, sem educação, sem capacidade de sobrevi-
           dar sequer tempo para pensarem quanto mais duvidarem de alguma   vência e em meios hostis que lhes encurtam a vida e castram os pen-
           coisa.                                             samentos. Para que vivem então? Mais valia não nascerem só que isso
              Gostava de escrever mas não tinha grande talento para ficcionar e   não é programado e a natureza é fértil em produzir seres que apenas
           colocar no papel algo que não fosse trivial, que desse que pensar, que   servem para alimento de outros seres, que mais fortes os sugam para
           tivesse substrato. Andava e imaginava histórias e cenas para passar ao   sua própria sobrevivência. É assim com todos os animais e o homem
           papel mas chegava a casa e o que pensara já não lhe parecia suficien-  não  é  diferente  mas,  por  ter  entendimento  que  associa  ideias,  tenta
           te para despertar a atenção de alguém e todo o escritor escreve para   sobreviver contra tudo e contra todos lutando com todas as armas de
           que o leiam. Por mais que digam que se pode escrever só por e para   que  pode  dispor,  causando  batalhas  que  a  ninguém  aproveitam.  Os
           exercício da mente todos anseiam que algum leitor se interesse e lhe   outros, aqueles que tudo obtêm por exploração dos mais fracos, quan-
           faça  elogios  ou  críticas  construtivas  que  o  levem  a  escrever  mais  e   do lhes negam a possibilidade do saque, criam motivos para actuarem
           melhor.                                            pela força começando guerras colocando as culpas na parte contrária
              No  computador  estavam  montes  de  escritos  inertes,  estáticos,   normalmente mais fraca ou totalmente indefesa. Onde está um deus
           inactivos, que lhe apetecia apagar mas não tinha coragem por serem da   nessas alturas? Quem defende ele?
           sua lavra e do seu esforço mas que não conseguia mostrar a ninguém   Ganham sempre os maus morrem os bons, mas serão mesmo bons?
           por achar-lhes sempre falta de qualidade.          Naturalmente não são, se lhes derem azo de ficarem com os bens e
              Lia muito e bons autores e quanto mais o fazia mais verificava que   proventos dos maus, acabam tão maus como eles.
           aquilo que escrevia não se poderia comparar ao conteúdo sério daque-  O passeio estava a terminar, olhou de novo para os passantes mas
           las obras.                                         nada viu, voltaram a ser apenas seres que se deslocavam sem pensa-
              Continuava andando e de repente acordava daquelas divagações   mento  e  nexo,  nem  sempre  a  aura  envolvente  dos  humanos  revela
           interioristas dizendo para si próprio que a sua vida fora cheia, plena de   idiossincrasias ou então era ele que já não as perscrutava.
           acção, aventura, trabalhos bem-feitos, estudos bem sucedidos, enfim,   Há realmente momentos para tudo mas também tudo muda e de
           realizações que não o deixaram mal, mas que não o realizaram total-  repente, pois aquilo que se pensa sente e vê muda totalmente um se-
           mente. Agora, aposentado, já sem acção directa em trabalhos remune-  gundo depois com a alteração de visão, local ou estado de espírito…


               BOLETIM DA ASSOCIAÇÃO DOS PUPILOS DO EXÉRCITO                                              63
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