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CRÓNICAS


           saUdades



           “tiago” barroso | 19460120









           Tenho saudades.

              Tenho  saudades  do  meu  tempo  de  criança  em  que,
           embora sentindo as dificuldades económicas de meus pais,
           esperava  sempre,  com  ansiedade  e  impaciência,  que  o
           Menino  Jesus  me  colocasse  dois  pequenos  cigarros  de
           chocolate na meia esfiapada pelo uso e constante cozedu-
           ra, que esperançado, pendurava num prego da chaminé; em
           que sentia uma alegria extrema quando meu pai me senta-
           va a seu lado numa pequena cadeira de palha, ou no seu
           colo, e me tecia elogios pelos bons resultados escolares.
              Tenho saudades do tempo em que se usava uma pe-
           quena ardósia para fazer as contas que a professora deter-
           minava, contas de todas as operações, com as respectivas
           provas reais ou dos noves; em que as brincadeiras eram simples, uma   Tenho saudades do tempo em que tentava chegar a casa o mais
           bola de trapos enrolados numa meia já gasta, um berlinde de garrafa   cedo possível, por vezes, descurando os afazeres profissionais, para
           de pirolito, um pequeno saco com botões, ou um qualquer outro ob-  acompanhar os meus filhos, ou para lhes ensinar as primeiras letras ou
           jecto que a imaginação inventasse, sem necessidade dos modernos,   as contas de somar, que eles iam aprendendo como se fosse uma outra
           complicados e dispendiosos equipamentos actuais.   brincadeira; em que me escutavam como se eu fosse um oráculo, um
              Tenho saudades dos momentos em que confraternizava com colegas   sábio, um génio, ou o detentor de toda a verdade, e aceitavam com
           da mesma idade e, com eles, trocava promessas de reciprocidade, com   exclamações de alegria tudo aquilo que lhes ia transmitindo.
           Dumas a bailar perante nós com o seu eterno “um por todos e todos   Tenho saudades dos momentos em que caminharam sozinhos para
           por um”; em que, por entre sonhos, planeávamos um futuro risonho,   a vida libertando-se da tutela paternal, mas sempre vigiados, mesmo
           com a cumplicidade dum cigarro que ia passando de mão em mão.  que à distância, para que, sempre que precisassem, lhes pudesse es-
              Tenho saudades daquelas pequenas tropelias da mocidade que eram,   tender uma rede que os amparasse, numa possível e fortuita queda; em
           afinal, apenas a mera demonstração dum espírito a querer tomar as   que lhes estendi a mão, sempre que necessário, em quaisquer circuns-
           rédeas do seu destino, mas sem conterem o mais pequeno indício de   tâncias, em qualquer lugar, de qualquer forma, de qualquer modo.
           intencional maldade; em que dava a mão ao idoso, ao enfermo, para os   Tenho saudades do tempo em que criaram as suas próprias famí-
           ajudar a sair do transporte, ou me levantava para oferecer o lugar a uma   lias e me brindaram com descendentes que tomei como fazendo parte
           senhora.                                           de mim mesmo, que acarinhei, que amei, que protegi e de quem me
              Tenho  saudade  dos  conselhos  bondosos  do  meu  pai  e  da  sua   orgulhei no seu crescer harmonioso; em que senti um regresso ao
           maneira simples de me afirmar que a honestidade, a verdade e o escru-  passado, mas com uma intensidade mais próxima, mais infantil, mais
           puloso cumprimento da palavra dada, eram as maiores fontes de rique-  contemporizadora, como se as idades fossem extremos que se tocas-
           za; em que os erros eram apontados com a benevolência de quem re-  sem.
           para que foram cometidos por falta de experiência.
              Tenho saudades da minha vida profissional onde sempre procurei   Tenho saudades.
           ser leal e honesto e desempanhar as minhas funções com os conheci-
           mentos que fui adquirindo ao longo do tempo, sem recorrer a meios   Mas o tempo, inexoravelmente, vai cumprindo o seu perpétuo ca-
           menos próprios para subir na carreira ou ocupar lugares de preferência.  minhar e, de repente, somos confrontados com uma situação que não
                                                              se compadece de saudosismos, nem de recordações de momentos livres,
              Tenho saudades das noites passadas em claro, com os filhos no   nem de pensamentos românticos, nem de situações ultrapassadas, numa
           colo, calando uma ansiedade que afligia e angustiado pelo desconhe-  época com valores diferentes daqueles que nos foram ensinados, e em
           cimento da gravidade dos sintomas, numa tentativa terna e carinhosa   permanente  mutação,  com  modos  de  pensar  que  não  têm  em  conta
           de lhes aliviar o desconforto das suas doenças infantis, que eu sempre   princípios éticos que a moderna sociedade colocou em desuso, adop-
           classificava  de  perigosíssimas  maleitas;  em  que  sofria  com  os  seus   tando  conceitos  inovadores,  que  são  mais  válidos  com  filosofias
           padecimentos, as suas dores, as sua angústias, os seus desconfortos,   assentes no materialismo, e relegando o espírito para situações torna-
           ou me regozijava com as suas venturas e os seus risos de alegria.   das obsoletas.



               BOLETIM DA ASSOCIAÇÃO DOS PUPILOS DO EXÉRCITO                                              57
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