Page 59 - Boletim APE_229
P. 59
CRÓNICAS
saUdades
“tiago” barroso | 19460120
Tenho saudades.
Tenho saudades do meu tempo de criança em que,
embora sentindo as dificuldades económicas de meus pais,
esperava sempre, com ansiedade e impaciência, que o
Menino Jesus me colocasse dois pequenos cigarros de
chocolate na meia esfiapada pelo uso e constante cozedu-
ra, que esperançado, pendurava num prego da chaminé; em
que sentia uma alegria extrema quando meu pai me senta-
va a seu lado numa pequena cadeira de palha, ou no seu
colo, e me tecia elogios pelos bons resultados escolares.
Tenho saudades do tempo em que se usava uma pe-
quena ardósia para fazer as contas que a professora deter-
minava, contas de todas as operações, com as respectivas
provas reais ou dos noves; em que as brincadeiras eram simples, uma Tenho saudades do tempo em que tentava chegar a casa o mais
bola de trapos enrolados numa meia já gasta, um berlinde de garrafa cedo possível, por vezes, descurando os afazeres profissionais, para
de pirolito, um pequeno saco com botões, ou um qualquer outro ob- acompanhar os meus filhos, ou para lhes ensinar as primeiras letras ou
jecto que a imaginação inventasse, sem necessidade dos modernos, as contas de somar, que eles iam aprendendo como se fosse uma outra
complicados e dispendiosos equipamentos actuais. brincadeira; em que me escutavam como se eu fosse um oráculo, um
Tenho saudades dos momentos em que confraternizava com colegas sábio, um génio, ou o detentor de toda a verdade, e aceitavam com
da mesma idade e, com eles, trocava promessas de reciprocidade, com exclamações de alegria tudo aquilo que lhes ia transmitindo.
Dumas a bailar perante nós com o seu eterno “um por todos e todos Tenho saudades dos momentos em que caminharam sozinhos para
por um”; em que, por entre sonhos, planeávamos um futuro risonho, a vida libertando-se da tutela paternal, mas sempre vigiados, mesmo
com a cumplicidade dum cigarro que ia passando de mão em mão. que à distância, para que, sempre que precisassem, lhes pudesse es-
Tenho saudades daquelas pequenas tropelias da mocidade que eram, tender uma rede que os amparasse, numa possível e fortuita queda; em
afinal, apenas a mera demonstração dum espírito a querer tomar as que lhes estendi a mão, sempre que necessário, em quaisquer circuns-
rédeas do seu destino, mas sem conterem o mais pequeno indício de tâncias, em qualquer lugar, de qualquer forma, de qualquer modo.
intencional maldade; em que dava a mão ao idoso, ao enfermo, para os Tenho saudades do tempo em que criaram as suas próprias famí-
ajudar a sair do transporte, ou me levantava para oferecer o lugar a uma lias e me brindaram com descendentes que tomei como fazendo parte
senhora. de mim mesmo, que acarinhei, que amei, que protegi e de quem me
Tenho saudade dos conselhos bondosos do meu pai e da sua orgulhei no seu crescer harmonioso; em que senti um regresso ao
maneira simples de me afirmar que a honestidade, a verdade e o escru- passado, mas com uma intensidade mais próxima, mais infantil, mais
puloso cumprimento da palavra dada, eram as maiores fontes de rique- contemporizadora, como se as idades fossem extremos que se tocas-
za; em que os erros eram apontados com a benevolência de quem re- sem.
para que foram cometidos por falta de experiência.
Tenho saudades da minha vida profissional onde sempre procurei Tenho saudades.
ser leal e honesto e desempanhar as minhas funções com os conheci-
mentos que fui adquirindo ao longo do tempo, sem recorrer a meios Mas o tempo, inexoravelmente, vai cumprindo o seu perpétuo ca-
menos próprios para subir na carreira ou ocupar lugares de preferência. minhar e, de repente, somos confrontados com uma situação que não
se compadece de saudosismos, nem de recordações de momentos livres,
Tenho saudades das noites passadas em claro, com os filhos no nem de pensamentos românticos, nem de situações ultrapassadas, numa
colo, calando uma ansiedade que afligia e angustiado pelo desconhe- época com valores diferentes daqueles que nos foram ensinados, e em
cimento da gravidade dos sintomas, numa tentativa terna e carinhosa permanente mutação, com modos de pensar que não têm em conta
de lhes aliviar o desconforto das suas doenças infantis, que eu sempre princípios éticos que a moderna sociedade colocou em desuso, adop-
classificava de perigosíssimas maleitas; em que sofria com os seus tando conceitos inovadores, que são mais válidos com filosofias
padecimentos, as suas dores, as sua angústias, os seus desconfortos, assentes no materialismo, e relegando o espírito para situações torna-
ou me regozijava com as suas venturas e os seus risos de alegria. das obsoletas.
BOLETIM DA ASSOCIAÇÃO DOS PUPILOS DO EXÉRCITO 57