Page 63 - Boletim APE_229
P. 63

CRÓNICAS


           ensaio sobRe a vida,


           QUe eU da moRte nada sei…



           ernâni balsa | 19600300



              iver é mais difícil do que estar morto. só que não se pode estar   pensar  é  também  um  dos  elementos  essenciais  desse  trajecto.  um
           Vmorto sem se ter vivido e ambos os estados têm uma sequência   exercício que nos ajuda a fazer desse espaço, um caminho de aquisição
           inultrapassável, mesmo que se queira fugir em frente, directamente para   de experiências e conhecimento. e o amor e os afectos, um arco-iris
           a morte. antes de se viver, é nada. e depois da vida, nada está adquiri-  que nos enche de cor e nos ajuda a criar a noção de comunidade e
           do  porque  ninguém  ainda  regressou  da  morte.  assim,  a  morte,  em   agregado humano e solidário. as memórias são então o aglutinador de
           abstracto é também nada.                           tudo isto e o elemento essencial para sentirmos como existente uma
              não, não vos venho falar da morte, embora ela esteja presente em   coisa que não conseguimos definir, mas à qual chamamos alma.
           toda  a  vida.  venho  mais  falar-vos  da  vida,  mas  não  apenas  da  vida   e  se  essas  mesmas  memórias  se  apagassem?  se,  por  via  duma
           embrulhada numa ideia de antecâmara para um paraíso, que também é   vacuidade na alma, desenvolvessemos apenas uma não memória? uma
           nada.  a  vida  que  me  atormenta  os  pensamentos,  é  aquela  que  nós   ausência de ligações entre tudo o que somos e o que fazemos. e mes-
           julgamos não poder viver. é portanto, o lado difícil desta tarefa diária e   mo entre tudo aquilo que pensamos? seria um vazio. e alturas há, da
           consecutiva que nos liga às realidades e às mentiras de procurarmos   nossa vida, em que sentimos essa inutilidade da nossa existência. é,
           vencer num labirinto, do qual apenas                                        por isso, importante termos a ca-
           conhecemos  a  entrada  e  duvidamos                                        pacidade de ir construindo essas
           muitas vezes que tenha uma ou mais                                          ligações à medida que caminhamos
           saídas. viver é o trajecto e nós pensa-                                     pelo trajecto da vida e assim pos-
           mos que é o objectivo.                                                      samos ir tecendo essa teia de ex-
              viver, é portanto mais do que um                                         periências, de princípios e valores,
           objectivo, porque viver implica o ca-                                       de  sucessos  e  de  fracassos,  de
           minho que se faz. o modo como nós                                           amores e desamores, de erros e de
           lidamos com a nossa existência e dela                                       generosidades, de sonhos e pesa-
           tiramos benefícios ou contrariedades.                                       delos,  porque  é  isso  tudo  que
           alegrias  ou  tristezas.  proveitos  ou                                     molda aquilo de que nada sabemos.
           perdas.  a  morte  só  é  objectivo,  se                                    a nossa alma, que talvez sintamos,
           entre o início do ser e ela, nada existir,                                  mas não conseguimos explicar.
           mas ninguém está interessado em alcançá-la, sendo, no entanto ela,   chegamos então à conclusão que é a vida o trajecto mais impor-
           uma constante que associamos à vida, porque gostamos de estabelecer   tante da nossa existência, aquele que pode e deve marcar a diferença
           patamares. no fundo existe uma auréola de mistério na morte, o que faz   entre o início e o fim. viver é uma missão carregada de significado e
           com que a englobemos, talvez abusivamente, no mistério da vida.  responsabilidade, de busca e de surpresas, de ansiedades e desafios,
              quantos de nós vive a vida com uma sensação de vazio? uma ou   de oportunidades e dificuldades. é, por isso, o espaço temporal que nos
           outra  vez,  isso  acontece.  sentimo-nos  ocos  e  sem  um  sentido  para   pode proporcionar um balanço positivo e dele podemos retirar, se o
           continuar, mas apesar de tudo, continuamos, porque a nossa intuição   soubermos gerir com bom senso e saber, a tão almejada felicidade, que
           não é chegar à morte. é evitá-la. desafiá-la. confundi-la e ludribiá-la.   tanto nos motiva ao longo deste sinuoso percurso. é de entre as difi-
           isto pode parecer um bocado confuso, mas se viver não é um objectivo,   culdades deste percurso que podem e devem ir nascendo as sementes
           mas apenas um trajecto e a morte não constitui também esse objectivo,   desse estado abençoado a que decidimos chamar felicidade. as reali-
           o que são estes estados opostos que regem a nossa existência? e re-  zações dos nossos sonhos, o alcançar das nossas metas e objectivos,
           parem que agora falo em existência e não em vida, porque a existência   a  defesa  dos  nossos  princípios  e  valores,  a  projecção  dos  nossos
           pode acontecer sem que vivamos essa dimensão temporal e espiritual.   afectos na família que vamos construindo e nas amizades que fomos
           viver, existir, morrer. tudo, estados difíceis de definir e entre eles esta-  ganhando, a certeza de que a nossa consciência é uma retrato límpido
           belecer uma relação definitiva.                    daquilo que pensamos, fazemos e desejamos para nós e para os outros.
              se a nossa existência não contiver uma vida, então ela é apenas,   viver é a exaltação do nosso melhor, depois de dominarmos e expur-
           não um trajecto, mas uma antecâmara para a morte e isso, para além   garmos algum mal que nos possa ter contaminado em momentos mais
           de redutor, aproxima demasiado a morte do início de tudo e mesmo que   fracos  da  nossa  resistência  humanitária.  viver  é  o  que  vale  a  pena,
           esse espaço perdure no tempo, é como se entre um e outro não exis-  entre o nada de que vimos e o nada para o qual caminhamos e um dia
           tisse  distância.  é  uma  linha  recta  entre  o  nada  e  o  nada.  por  isso,   nos rouba deste benefício da existência com verdadeiro significado.
           existem as memórias. as memórias são condimentos da vida. são es-  por tudo isto, devemos à vida o esforço de a tornarmos melhor, em
           tados de alma, odores, sentidos, olhares e sentimentos que nos ajudam   cada dia que passa e de estendermos aos outros esse estado de sã
           a construir uma dimensão significativa desse nosso estado de existir.   convivência dentro de nós próprios…



               BOLETIM DA ASSOCIAÇÃO DOS PUPILOS DO EXÉRCITO                                              61
   58   59   60   61   62   63   64   65   66   67   68