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CRÓNICAS
ensaio sobRe a vida,
QUe eU da moRte nada sei…
ernâni balsa | 19600300
iver é mais difícil do que estar morto. só que não se pode estar pensar é também um dos elementos essenciais desse trajecto. um
Vmorto sem se ter vivido e ambos os estados têm uma sequência exercício que nos ajuda a fazer desse espaço, um caminho de aquisição
inultrapassável, mesmo que se queira fugir em frente, directamente para de experiências e conhecimento. e o amor e os afectos, um arco-iris
a morte. antes de se viver, é nada. e depois da vida, nada está adquiri- que nos enche de cor e nos ajuda a criar a noção de comunidade e
do porque ninguém ainda regressou da morte. assim, a morte, em agregado humano e solidário. as memórias são então o aglutinador de
abstracto é também nada. tudo isto e o elemento essencial para sentirmos como existente uma
não, não vos venho falar da morte, embora ela esteja presente em coisa que não conseguimos definir, mas à qual chamamos alma.
toda a vida. venho mais falar-vos da vida, mas não apenas da vida e se essas mesmas memórias se apagassem? se, por via duma
embrulhada numa ideia de antecâmara para um paraíso, que também é vacuidade na alma, desenvolvessemos apenas uma não memória? uma
nada. a vida que me atormenta os pensamentos, é aquela que nós ausência de ligações entre tudo o que somos e o que fazemos. e mes-
julgamos não poder viver. é portanto, o lado difícil desta tarefa diária e mo entre tudo aquilo que pensamos? seria um vazio. e alturas há, da
consecutiva que nos liga às realidades e às mentiras de procurarmos nossa vida, em que sentimos essa inutilidade da nossa existência. é,
vencer num labirinto, do qual apenas por isso, importante termos a ca-
conhecemos a entrada e duvidamos pacidade de ir construindo essas
muitas vezes que tenha uma ou mais ligações à medida que caminhamos
saídas. viver é o trajecto e nós pensa- pelo trajecto da vida e assim pos-
mos que é o objectivo. samos ir tecendo essa teia de ex-
viver, é portanto mais do que um periências, de princípios e valores,
objectivo, porque viver implica o ca- de sucessos e de fracassos, de
minho que se faz. o modo como nós amores e desamores, de erros e de
lidamos com a nossa existência e dela generosidades, de sonhos e pesa-
tiramos benefícios ou contrariedades. delos, porque é isso tudo que
alegrias ou tristezas. proveitos ou molda aquilo de que nada sabemos.
perdas. a morte só é objectivo, se a nossa alma, que talvez sintamos,
entre o início do ser e ela, nada existir, mas não conseguimos explicar.
mas ninguém está interessado em alcançá-la, sendo, no entanto ela, chegamos então à conclusão que é a vida o trajecto mais impor-
uma constante que associamos à vida, porque gostamos de estabelecer tante da nossa existência, aquele que pode e deve marcar a diferença
patamares. no fundo existe uma auréola de mistério na morte, o que faz entre o início e o fim. viver é uma missão carregada de significado e
com que a englobemos, talvez abusivamente, no mistério da vida. responsabilidade, de busca e de surpresas, de ansiedades e desafios,
quantos de nós vive a vida com uma sensação de vazio? uma ou de oportunidades e dificuldades. é, por isso, o espaço temporal que nos
outra vez, isso acontece. sentimo-nos ocos e sem um sentido para pode proporcionar um balanço positivo e dele podemos retirar, se o
continuar, mas apesar de tudo, continuamos, porque a nossa intuição soubermos gerir com bom senso e saber, a tão almejada felicidade, que
não é chegar à morte. é evitá-la. desafiá-la. confundi-la e ludribiá-la. tanto nos motiva ao longo deste sinuoso percurso. é de entre as difi-
isto pode parecer um bocado confuso, mas se viver não é um objectivo, culdades deste percurso que podem e devem ir nascendo as sementes
mas apenas um trajecto e a morte não constitui também esse objectivo, desse estado abençoado a que decidimos chamar felicidade. as reali-
o que são estes estados opostos que regem a nossa existência? e re- zações dos nossos sonhos, o alcançar das nossas metas e objectivos,
parem que agora falo em existência e não em vida, porque a existência a defesa dos nossos princípios e valores, a projecção dos nossos
pode acontecer sem que vivamos essa dimensão temporal e espiritual. afectos na família que vamos construindo e nas amizades que fomos
viver, existir, morrer. tudo, estados difíceis de definir e entre eles esta- ganhando, a certeza de que a nossa consciência é uma retrato límpido
belecer uma relação definitiva. daquilo que pensamos, fazemos e desejamos para nós e para os outros.
se a nossa existência não contiver uma vida, então ela é apenas, viver é a exaltação do nosso melhor, depois de dominarmos e expur-
não um trajecto, mas uma antecâmara para a morte e isso, para além garmos algum mal que nos possa ter contaminado em momentos mais
de redutor, aproxima demasiado a morte do início de tudo e mesmo que fracos da nossa resistência humanitária. viver é o que vale a pena,
esse espaço perdure no tempo, é como se entre um e outro não exis- entre o nada de que vimos e o nada para o qual caminhamos e um dia
tisse distância. é uma linha recta entre o nada e o nada. por isso, nos rouba deste benefício da existência com verdadeiro significado.
existem as memórias. as memórias são condimentos da vida. são es- por tudo isto, devemos à vida o esforço de a tornarmos melhor, em
tados de alma, odores, sentidos, olhares e sentimentos que nos ajudam cada dia que passa e de estendermos aos outros esse estado de sã
a construir uma dimensão significativa desse nosso estado de existir. convivência dentro de nós próprios…
BOLETIM DA ASSOCIAÇÃO DOS PUPILOS DO EXÉRCITO 61