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CRóNICAs











                                    Gente simples


             ANTÓNIO BARROSO
             19460120



                 ecordo-me,  há  três  ou  quatro  décadas  atrás,  dum   – Olhe que também nã se agorvernava, nã senhor, só
             Rprograma televisivo que, se a memória não me atrai-  levo o panito e o conduto.
             çoa, se intitulava “A gente simples cá do meu bairro”. Nele   E  lá  continua,  sorridente,  pelo  atalho  do  costume,
             se fazia referência, em cada episódio, a alguém com uma   depois de trocarmos mais algumas palavras, quase sempre
             história que merecia ser compartilhada com o público, em   em relação ao nosso Alentejo.
             geral, ou porque constituía um exemplo de ingénua sim-  A seguir, cruzo-me com um senhor que costuma ser
             plicidade, ou porque exaltava o espírito de união e entre-  arrastado, em passo de corrida, por um cão de porte mé-
             ajuda  dos  habitantes  daquela  zona,  ou  até  mesmo  pelo   dio, que só pára para que eu lhe faça festas. O dono creio
             comovente  dramatismo  de  algumas  situações.  Era,  no   que é engenheiro maquinista naval e, embora reformado,
             fundo, o retracto a preto e branco dum conjunto de pes-  ainda presta assistência ao armador, fiscalizando as repa-
             soas ligadas por uma vivência comum, num dos muitos   rações dos navios, normalmente, efectuadas na África do
             bairros que enxameavam Lisboa.                     Sul, onde chega a passar períodos de dois a três meses.
                Veio-me este programa à memória por lhe achar uma   Nesses intervalos, é a mulher que se encarrega do passeio
             certa semelhança com a minha situação actual, vivendo,   do animal, embora com menor frequência.
             há  quarenta  e  três  anos,  numa  zona  onde,  apesar  das   Em passinhos curtos, com uma bengala numa das mãos
             constantes alterações de residência, a maioria dos habitan-  e a outra apoiada na cerca que contorna o parque infantil,
             tes ainda se conhece. Até é natural que levando, diaria-  uma senhora com oitenta e muitos anos mas duma jovia-
             mente, a minha cadelinha a passear pelo parque adjacen-  lidade e simpatia que encantam,vai fazendo o seu percur-
             te,  trave  conhecimento  com  os  outros  canídeos  e   so matinal.
             respectivos  donos,  bem  como  com  as  pessoas  que  dele   – Bons olhos a vejam. Bonita como sempre!...
             fazem uso para passeio ou atalhar caminho para as suas   – Bom dia, senhor doutor.
             residências. Assim, é natural que, no périplo cinco ou seis   Confesso que não sei onde ela foi desencantar essa do
             vezes repetido, diariamente, me cruze com factos e acon-  doutor, e por mais que eu lhe tenha dito e jurado que não
             tecimentos  que,  para  mim,  têm  grande  significado,  mas   o sou, responde-me sempre:
             com as minhas desculpas para os forçados leitores que não   – Sim, senhor doutor.
             lhe encontrem qualquer interesse.                    Aí, desisti e, se ela assim o quer, pois que seja doutor.
                Pois  bem,  para  ilustrar  um  dia,  como  tantos  outros,   Um pouco mais adiante, vejo o Todd, um cão também
             logo à saída de casa, somos cumprimentados, com exube-  de grande porte, mas que não corre, só anda, pachorren-
             rância, por um enorme cão, o Dali, que se não pesa uns   tamente, acompanhando a dona, angolana, divorciada, que
             bons cinquenta quilos, pouco deve faltar. É um mansarrão   regressou a Portugal naquela leva de refugiados da década
             de porte muito avantajado que, desde há anos, tomou a   de  setenta.  Paramos  um  pouco,  falamos  de  recordações
             minha cadela como sua protegida, e que, assim que nos   daquela  terra  africana  onde  tem  um  filho  a  trabalhar  e
             vê,  com  uns  grunhidos  característicos,  corre  a  fazer  o   que a visita, regularmente, duas vezes por ano, da última,
             respectivo cumprimento. O dono, a que a diabetes obrigou   já com uma netinha que viu pela primeira vez. Depois de
             a que lhe fosse amputada uma perna, vigia-o, de longe,   fazermos algumas previsões quanto ao tempo, seguimos
             assente numa prótese e amparado pelas canadianas, en-  os trajectos a que os nossos cães nos habituaram.
             quanto  vai  enrolando,  meticulosamente,  e  com  todo  o   Sentado num dos bancos do parque, com um pequeno
             vagar, um cigarro de mortalha.                     rádio  encostado  ao  ouvido,  um  senhor  com  oitenta  e
                Um pouco mais adiante, encontro a porteira duma das   muitos anos, levanta os olhos, quando eu me aproximo, e
             torres, alentejana de cepa, sempre bem-humorada, e com   lança-me de chofre:
             quem, normalmente, travo um pequeno diálogo:         – A situação está má!... Está mesmo muito má!...
                – Atão comadre, nã se canse e dêxe os sacos ali em   – Não se preocupe, que daqui a pouco vai melhorar...
             minha casa.                                        – digo-lhe eu, para o animar, sem qualquer convicção.



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