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CRóNICAs (cont.)
eu digo-lhe que sobre tudo e nada. não faço projectos nem ta! tudo o resto que a sobrevoa à altura das pessoas per-
traço cenários e muito menos enredos. ela olha-me intri- tencerá a um mundo estranho que embora não a pertur-
gada. eu digo-lhe que escrevo sobre as pessoas e as coisas. be não a preocupa sobremaneira. a maior perturbação que
sobre tudo o que se passa. o que poderia passar e mesmo a mikas teve nos últimos tempos foram aquelas cartas que
sobre o que nunca se passará. sobre o passado e o futuro, o faneco lhe escreveu. que raio de papeis eram aqueles,
que o presente são apenas as palavras e as ideias que vou cheios de rabiscos, que o gato da amiga da dona lhe man-
tecendo nesta tela do quotidiano. ela olha-me com aque- dava?.... a dona que por acaso és tu, paula, bem lhe tentou
les olhos tranquilos e transparentes que lhe deixam à explicar que eram cartas e que nas cartas se diziam mui-
mostra uma alma, se é que ela existe, pura e simples. um tas coisas. se punham sentimentos e desejos. se contavam
olhar ao mesmo tempo curioso e desconfiado que constrói sonhos e desilusões e que até se faziam declarações de
tantas dúvidas e perguntas que nem eu sei como respon- amor. a mikas coçou os bigodes longos e ficou-se a mirar
der duma forma objectiva e clara. às vezes, quando o a paula. hummm... amor!?... se ela entendesse o que era
movimento do café abranda, encosta-se ao fundo do bal- isso havia de se interrogar porque raio o faneco, um gato
cão e não sei se sonha. prefiro imaginar que ensaia e que ela nem conhecia, lhe escrevia cartas com essas coi-
equaciona o presente a tentar saber mais dela própria. sas?... mas enfim... são histórias de gatos.
interroga-se sobre quem é. o que é e o que poderia ser e perguntas-me tu porque escrevo sobre tudo isto.
mesmo agora se não estivesse ali absorta num olhar vago sobre as personagens do “apocalipse dos trabalhadores”.
e longínquo, fora daquelas quatro paredes e pudese va- sobre ti. sobre o tóto e a mikas e o faneco e mais a rosa
guear pelo seu universo interior e profundo, feito jardim maria, que também apenas eu conheço. e a rosa maria
de traços inertes e aleatórios como os que ela empresta com essa mesma interrogação no olhar a lembrar tâmaras
às figuras que inventa. um jardim onde coubessem todas cheirosas que se nos cravam no paladar da nossa atenção.
as pessoas que ela ama e respeita e mais os sons dos pink a rosa maria, curiosa e serena, a perguntar-me porque lhe
floyd, que se espalham na sala e ela argumenta não co- levei os três desenhos que havia feito na véspera. é que
nhecer bem nem ligar muito, mas que vão conquistando ela aproveita os tempos mortos da sua azáfama de servir
os seus sentidos. um mundo de sonhos, fantasias e anseios às mesas para ir rabiscando ideias gráficas e rebuscadas e
que ela certamente tem mas não mostra, ciosa do seu eu ontem pedi-lhe esprestado o tríptico que ela tinha
espaço próprio e imensamente sereno. tem um ar doce e acabado de criar para servir de ilustração a um texto que
muito tranquilo mas adivinha-se nela uma ânsia enorme ainda não tinha feito. no fundo todos se interrogam porque
sobre tudo o que a rodeia. no entanto mantem-se serena razão eu escrevo tudo isto e levo desenhos da rosa maria
e doce. pressente-se uma bondade transbordante, mas para casa. ah! mas já lhos devolvi. e a ela ninguém per-
contida e um carácter humano, como se as pessoas a pu- guntará porque faz desenhos. e o que representam. o que
dessem surpreender, mas mesmo assim, não conseguisse quer significar com eles?
senão acreditar nelas. eu escrevo porque gosto de pessoas. de bonecos. de
o senhor ferreira, esse, por esta altura do livro que animais e mesmo de coisas. de todas as coisas. todas as
repousa a meu lado, já tinha morrido. mais precisamente coisas são passíveis de contar uma história embora eu nem
a três quartos da página cinquenta e oito, a maria da conte histórias. eu prefiro traçar pinceladas de palavras e
graça recebeu um telefonema anunciando que o senhor deixar tudo num estado semi acabado. ideias pensadas e
ferreira, a quem ela fazia a limpeza da casa e também a reflectidas mas raramente concluídas, para que cada um
da sua incansável libido, de cada vez que ele se punha as conclua como muito bem lhe aprouver. escrevo porque
nela, se havia atirado da janela a baixo e jazia agora iner- gosto. gosto de momentos e pensamentos e porque gosto
te e sem vida no passeio daquela rua de bragança. ninguém deles todos não sei que melhor fazer do que recriá-los em
mais o terá conhecido melhor do que eu, a não ser o palavras. em ideias. em histórias sem história nem enredo
walter hugo mãe, que o inventou e a maria da graça, mas para que perdurem na memória colectiva mesmo que essa
essa era apenas uma personagem do “apocalipse dos tra- seja apenas a minha.
balhadores” e portanto conhecia-o por pertencerem à escrevo porque gosto de ler também o que os outros
mesma história. para te contar quem era a maria da gra- escrevem, seja em palavras, rabiscos ou apenas sentimen-
ça teria de folhear as páginas já lidas do romance que tos. e porque estava a ler o walter hugo mãe, imaginei que
ando a ler e isso seria uma intromissão na esfera privada poderia também ser escritor. vâ glõria a de quem apenas
do autor, o walter hugo mãe, de quem ainda agora te sonha e não concretiza… mas sente o prazer de respeitar
falei. o sonho concretizado de alguns… escrevo, portanto, por-
a mikas, ao menos, não se preocupa com nada disto que sonho…
porque para ela a vida e a morte só existem ao nível das
suas quatro patas e ainda por cima sempre lhe ensinaram contribuições:
que vidas ela tinha sete. e nenhuma tinha ainda sido gas- “o apocalipse dos trabalhadores”, de walter hugo mãe
“tríptico” de rosa maria
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