Page 47 - Boletim APE_227
P. 47

CRóNICAs (cont.)





             eu digo-lhe que sobre tudo e nada. não faço projectos nem   ta! tudo o resto que a sobrevoa à altura das pessoas per-
             traço cenários e muito menos enredos. ela olha-me intri-  tencerá a um mundo estranho que embora não a pertur-
             gada. eu digo-lhe que escrevo sobre as pessoas e as coisas.   be não a preocupa sobremaneira. a maior perturbação que
             sobre tudo o que se passa. o que poderia passar e mesmo   a mikas teve nos últimos tempos foram aquelas cartas que
             sobre o que nunca se passará. sobre o passado e o futuro,   o faneco lhe escreveu. que raio de papeis eram aqueles,
             que o presente são apenas as palavras e as ideias que vou   cheios de rabiscos, que o gato da amiga da dona lhe man-
             tecendo nesta tela do quotidiano. ela olha-me com aque-  dava?.... a dona que por acaso és tu, paula, bem lhe tentou
             les  olhos  tranquilos  e  transparentes  que  lhe  deixam  à   explicar que eram cartas e que nas cartas se diziam mui-
             mostra uma alma, se é que ela existe, pura e simples. um   tas coisas. se punham sentimentos e desejos. se contavam
             olhar ao mesmo tempo curioso e desconfiado que constrói   sonhos  e  desilusões  e  que  até  se  faziam  declarações  de
             tantas dúvidas e perguntas que nem eu sei como respon-  amor. a mikas coçou os bigodes longos e ficou-se a mirar
             der  duma  forma  objectiva  e  clara.  às  vezes,  quando  o   a paula. hummm... amor!?... se ela entendesse o que era
             movimento do café abranda, encosta-se ao fundo do bal-  isso havia de se interrogar porque raio o faneco, um gato
             cão  e  não  sei  se  sonha.  prefiro  imaginar  que  ensaia  e   que ela nem conhecia, lhe escrevia cartas com essas coi-
             equaciona  o  presente  a  tentar  saber  mais  dela  própria.   sas?... mas enfim... são histórias de gatos.
             interroga-se sobre quem é. o que é e o que poderia ser   e  perguntas-me  tu  porque  escrevo  sobre  tudo  isto.
             mesmo agora se não estivesse ali absorta num olhar vago   sobre  as  personagens  do “apocalipse  dos  trabalhadores”.
             e longínquo, fora daquelas quatro paredes e pudese va-  sobre ti. sobre o tóto e a mikas e o faneco e mais a rosa
             guear pelo seu universo interior e profundo, feito jardim   maria,  que  também  apenas  eu  conheço.  e  a  rosa  maria
             de traços inertes e aleatórios como os que ela empresta   com essa mesma interrogação no olhar a lembrar tâmaras
             às figuras que inventa. um jardim onde coubessem todas   cheirosas que se nos cravam no paladar da nossa atenção.
             as pessoas que ela ama e respeita e mais os sons dos pink   a rosa maria, curiosa e serena, a perguntar-me porque lhe
             floyd, que se espalham na sala e ela argumenta não co-  levei os três desenhos que havia feito na véspera. é que
             nhecer bem nem ligar muito, mas que vão conquistando   ela aproveita os tempos mortos da sua azáfama de servir
             os seus sentidos. um mundo de sonhos, fantasias e anseios   às mesas para ir rabiscando ideias gráficas e rebuscadas e
             que  ela  certamente  tem  mas  não  mostra,  ciosa  do  seu   eu  ontem  pedi-lhe  esprestado  o  tríptico  que  ela  tinha
             espaço próprio e imensamente sereno. tem um ar doce e   acabado de criar para servir de ilustração a um texto que
             muito tranquilo mas adivinha-se nela uma ânsia enorme   ainda não tinha feito. no fundo todos se interrogam porque
             sobre tudo o que a rodeia. no entanto mantem-se serena   razão eu escrevo tudo isto e levo desenhos da rosa maria
             e  doce.  pressente-se  uma  bondade  transbordante,  mas   para casa. ah! mas já lhos devolvi. e a ela ninguém per-
             contida e um carácter humano, como se as pessoas a pu-  guntará porque faz desenhos. e o que representam. o que
             dessem surpreender, mas mesmo assim, não conseguisse   quer significar com eles?
             senão acreditar nelas.                               eu  escrevo  porque  gosto  de  pessoas.  de  bonecos.  de
                o  senhor  ferreira,  esse,  por  esta  altura  do  livro  que   animais e mesmo de coisas. de todas as coisas. todas as
             repousa a meu lado, já tinha morrido. mais precisamente   coisas são passíveis de contar uma história embora eu nem
             a  três  quartos  da  página  cinquenta  e  oito,  a  maria  da   conte histórias. eu prefiro traçar pinceladas de palavras e
             graça recebeu um telefonema anunciando que o senhor   deixar tudo num estado semi acabado. ideias pensadas e
             ferreira, a quem ela fazia a limpeza da casa e também a   reflectidas mas raramente concluídas, para que cada um
             da sua incansável libido, de cada vez que ele se punha   as conclua como muito bem lhe aprouver. escrevo porque
             nela, se havia atirado da janela a baixo e jazia agora iner-  gosto. gosto de momentos e pensamentos e porque gosto
             te e sem vida no passeio daquela rua de bragança. ninguém   deles todos não sei que melhor fazer do que recriá-los em
             mais  o  terá  conhecido  melhor  do  que  eu,  a  não  ser  o   palavras. em ideias. em histórias sem história nem enredo
             walter hugo mãe, que o inventou e a maria da graça, mas   para que perdurem na memória colectiva mesmo que essa
             essa era apenas uma personagem do “apocalipse dos tra-  seja apenas a minha.
             balhadores”  e  portanto  conhecia-o  por  pertencerem  à   escrevo porque gosto de ler também o que os outros
             mesma história. para te contar quem era a maria da gra-  escrevem, seja em palavras, rabiscos ou apenas sentimen-
             ça  teria  de  folhear  as  páginas  já  lidas  do  romance  que   tos. e porque estava a ler o walter hugo mãe, imaginei que
             ando a ler e isso seria uma intromissão na esfera privada   poderia também ser escritor. vâ glõria a de quem apenas
             do  autor,  o  walter  hugo  mãe,  de  quem  ainda  agora  te   sonha e não concretiza… mas sente o prazer de respeitar
             falei.                                             o sonho concretizado de alguns… escrevo, portanto, por-
                a mikas, ao menos, não se preocupa com nada disto   que sonho…
             porque para ela a vida e a morte só existem ao nível das
             suas quatro patas e ainda por cima sempre lhe ensinaram   contribuições:
             que vidas ela tinha sete. e nenhuma tinha ainda sido gas-  “o apocalipse dos trabalhadores”, de walter hugo mãe
                                                                  “tríptico” de rosa maria

                                                                              Boletim da Associação dos Pupilos do Exército  |  45
   42   43   44   45   46   47   48   49   50   51   52