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EVOCAÇÕEs











                                     Tempo de Memória


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                                                                                                          19550373



                                                                melódico, pelo que representava, o início dos sonhos até
                                                                a uma próxima madrugada.
                                                                  Tudo estava enquadrado no nosso dia-a-dia no Pilão.
                                                                Esse toque a silêncio era efectuado por um artista militar,
                                                                à  época,  chamado  corneteiro.  Entre  os  dois  pavilhões
                                                                requintava suavemente aquele toque.
                                                                  Um  dia,  modernices,  destruíram  o  meu  prazer  de
                                                                ouvir tão delicado som. Sem uma explicação foi montado
                                                                em  todo  o  Pilão,  um  sistema  sonoro  electrizante,  frio,
                                                                insípido e doloroso. Sim doloroso!
                                                                  Deixei de sentir nos meus ouvidos a melodia do tal
                                                                artista, que suavizava os meus sonhos.
                                                                  Fora substituído por um toque a silêncio com timbre
                                                                de “cana rachada”, sem sentimento. Fenómenos eléctricos,
                                                                transformados numa acústica sem alma.
                                                                  O  tempo  foi  passando  e  para  lá  dos  anos  no  Pilão,
                                                                mantive os silêncios, eu e muitos de nós, jovens dos anos
                                                                cinquenta/sessenta,  que  não  perderam  o  sonho  de  uma
                 s memórias guardam-se em gavetas. Quando chega-  madrugada.
             Ado tempo certo abrem-se essas gavetas, uma de cada   Um  dia,  uns  poucos,  resolveram  não  adormecer  e
             vez, para que o tempo não passe tão depressa.      muitos outros então, foram acordados. O sonho concreti-
                No mesmo espaço físico entre pavilhões da 3.ª e 4.ª   zou-se!!
             Companhia, duas memórias, duas gavetas.              Hoje, jovens dos anos oitenta/noventa provavelmente
                1.ª Gaveta – O muar e os sacos.                 não têm motivos para sonhos, resta-lhes a esperança.
                Quinta-feira, terminadas as aulas, regresso à 1.ª Secção.   Eu, “jovem idoso”, continuo a recordar aquele “toque
             Noite, após jantar, em cima das camas lá estavam os sacos   a silêncio”, interpretado com alma, por um artista de quem
             axadrezados de azul e cinza, contendo roupa lavada para   nunca soube o seu nome.
             a semana.
                Sexta-feira de manhã, os mesmos sacos, agora conten-
             do roupa suja, são devolvidos para a lavandaria.
                A  recolha  entre  pavilhões  era  feita  numa  carroça,
             puxada por uma pachorrenta mula. O muar, conhecia o
             caminho e a missão passo a passo, orelhas baixas, recebia
             na  carroça  o  embate  de  sacos  e  mais  sacos  com  roupa,
             lançados das varandas e janelas dos dois pavilhões.
                Treino de pontaria à carroça, no entanto esta activida-
             de tinha o seu código de honra. Nunca acertar no pacien-
             te animal que, devagar, fazia o “seu” trabalho. Nós, delirá-
             vamos com a brincadeira. O animal confiava. Por certo,
             sentia que estava a lidar com malta fixe!
                2.ª Gaveta – O toque “ a silêncio”.
                Ao final de um dia escolar, quando já no ripanço da
             cama, Salão – 3.ª Companhia, luz apagada, ouvia aquele
             toque  a  “silêncio”.  Sempre  me  agradou  pelo  seu  tom


                                                                              Boletim da Associação dos Pupilos do Exército  |  11
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