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EVOCAÇÕEs
Regresso ao passado
RUI CABRAL TELO
19480265
Pequenino, careca, de bigode, era merceeiro na aldeia
da Azóia, que ficava mesmo antes de chegar ao farol do
Cabo. Além de abastecer o pouco povo da terra, era tam-
bém regedor e cantoneiro, tendo imenso orgulho disso e
andando quase sempre fardado.
* * *
O Sr. Telo, que gosta tanto da pesca e desta zona,
porque não passa aqui as suas férias? Tenho ali uma casi-
nha que lhe posso alugar baratinha pelo mês de Agosto.
E lá fomos ver a casa. Fiquei de boca aberta ao chegar
àquela habitação. Bem no fundo da aldeia havia um pe-
queno quintal rodeado de muros de pedra solta. A casa
ficava quase ao fundo desse quintal totalmente cheio de
silvados e ervas daninhas.
Era alta e toda de pedra. Apenas uma porta que dava
para a única divisão do piso inferior com chão de terra
Locais de Pesca – Cabo da Roca batida. O mobiliário constava apenas de uma grande mesa
e de um armário pendurado numa das paredes, com por-
embro-me… Bem, lembro-me de tanta coisa. Como tas de rede mosqueira.
Lera bom ir à pesca com o meu Pai aos fins-de-semana. O piso superior ocupava apenas meia casa e era um
Vivíamos com pouco mas não éramos pobres. A minha sótão construído em madeira, também com uma única
mãe fazia milagres com o parco rendimento de um fun- divisão e os tectos esconsos eram forrados a tabuinhas.
cionário público. Felizmente o meu Pai, que entretanto Nesse piso havia duas pequenas janelas. O acesso ao sótão
aprendera contabilidade, pediu licença ilimitada e foi para era feito por uma escada interior, em madeira, que partia
chefe da contabilidade de uma boa firma em Lisboa. Pas- da cozinha, com parede protectora e porta. Ao abrir-se a
sámos a ter um pouco mais e o meu Pai aproveitava para, porta, tinha um pequeno patamar antes de se iniciarem
caçar e pescar sempre que podia. Desde muito pequeno as escadas. Os meus nove anos levaram-me a ver aquela
que o acompanhei nessas actividades. Morando na linha pobre habitação como uma casa de contos de fadas. Fiquei
de Sintra, deslocávamo-nos muitas vezes para a região do encantado, e diga-se que o meu Pai também.
Cabo da Roca onde, fazendo quase alpinismo, corríamos Acordado o preço, selou-se o contrato com um aperto
todas aquelas praias em manhãs, muitas vezes radiosas, de mão. E lá fomos com a boa-nova para a minha mãe e
outras de intenso nevoeiro, muito comum na região.
Recordo o silêncio apenas interrompido pelo marulhar
das ondas e também o cheiro característico da maresia.
Na praia escavávamos a areia procurando a “tiagem”, mi-
nhocas finas e compridas tanto do agrado dos peixes. Mas
outros iscos eram usados como; caranguejos (mouras),
lapas, mexilhões e pequenos camarões apanhados em
mini-lagoas junto das rochas.
De tanto gostar daquela região, o meu Pai chegou à
fala com uma característica personagem quase saída da
ópera “A flauta Mágica” de Mozart, o Sr. Torcatinho que,
se usasse na cabeça alguns ramos de árvore e flores, pas-
saria muito bem por Papageno. Vista da Azoia
Boletim da Associação dos Pupilos do Exército | 9