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EVOCAÇÕEs (cont.)
minha Mãe e irmã a deslocarem-se até ao campo… sem-
pre que se tornava necessário.
Um dia fomos alertados pelos gritos da minha Mãe,
que saindo do quarto, ao descer as escadas deu com uma
vaca que, pachorrenta, entrara pela porta e estava planta-
da dentro da cozinha. Tivemos que a acalmar mas não
pudemos deixar de rir pelo tremendo susto que apanhara.
Todas as manhãs muito cedo, eu e o meu Pai, armados
dos respectivos apetrechos, deslocávamo-nos até à costa
onde eu, preso com uma trela a um peitoral de correias
que o meu Pai construiu, descia penhascos e barrancos até
às lajes onde fazíamos poiso para a actividade piscatória.
Corremos todas as praias da região: Adraga, Ursa,
Magoito, São Julião, Ericeira, etc. As deslocações para os
Praia de São Julião locais mais longe, faziam-se em velhas camionetas de
carreira sendo as refeições levadas em bornal de lona,
irmã. Claro que o nosso entusiasmo levou-nos a descrever constando de sandes, cerveja e gasosa (pirolitos) para mim.
aquele “palácio” como se de um castelo se tratasse. O nosso “Toy” acompanhava-nos sempre que pescávamos
No dia um de Agosto partimos de camioneta do Cacém em locais não perigosos para ele. Quando íamos para sítios
até zóia, acompanhados pelo nosso “pointer”, o “Toy”. O mais difíceis, o bicho ficava em casa a fazer companhia às
pobre bicho enjoou todo o caminho e tivemos que, algu- mulheres. Muito peixe pescámos e muito peixe comemos.
mas vezes, pedir ao condutor para parar, para que o ca- Naquele tempo a pesca era farta na zona e os pesqueiros,
chorro pudesse recuperar. Bons tempos aqueles em que que nos eram dados a conhecer pelos pescadores da terra,
os cães tinham “direitos”. eram perigosos mas profícuos. No regresso, no final de
Parámos na venda do Sr. Torcatinho para irmos buscar Agosto, voltámos também de camioneta, não sem antes
a chave. – “Chave, Sr. Telo? Aqui não se fecham as portas. passarmos pela venda do Sr. Torcatinho para as despedidas.
Podem ir que está aberta.” O pobre do “Toy” voltou a enjoar mas dessa vez vomitou
À chegada, ao olhar para a casa, a cara da minha Mãe grandes bocados que se veio a verificar serem de atum. O
começou a mudar. Assim que entrou não resistiu e rompeu bicho, aproveitando as despedidas, tratou de devorar
em copioso pranto que nos deixou consternados. Ao fim apressadamente uns bons nacos de atum fresco que a
de algum tempo e de muita conversa, tipo: –- Deixa lá, é “operática” personagem tinha de molho para vender aos
por pouco tempo e vais ver que vai ser engraçado. Vamos conterrâneos.
limpar isto tudo e dar-lhe alguma graça. * * *
A pouco e pouco foi recuperando da estupefacção e Hoje, tenho uma casita na Assafora entre São João das
lá se convenceu que teria de viver ali durante um mês. Lampas e a praia de São Julião. Passo lá muitos dias por
E assim foi. A casa depois de limpa até era aceitável e ano de verão e Inverno. Uma cadelita rafeira, que um dos
com umas cortinas de chita e umas flores, até ficou com vizinhos recolheu, é a minha companheira nos meus passeios
algum encanto. O chão, que era de terra bem batida, de- matinais pela zona. Olho dali o mar virado para o lado do
pois de bem varrido e ligeiramente humedecido, até fica- cabo e vêm-me à recordação imagens da velha casa da
va um brinquinho. A parte do telhado não coberta pela Azóia que agora já não existe. O odor das terras lavradas,
base do sótão, era de traves e telhas, e pelo intervalo de a luminosidade e até o nevoeiro, lembram-me o ambiente
algumas, passavam réstias de sol Na grande chaminé vivia que lá vivi durante aquele mês de Agosto de 1946. Foram
uma alentada aranha, na sua teia, que o meu Pai não tempos difíceis, pois a 2.ª guerra mundial tinha terminado
deixou matar porque apanhava as moscas e outros alados apenas há um ano e os recursos necessários à vida ainda
bicharocos. Eu e a minha irmã inventávamos brincadeiras eram escassos, mas com imaginação e boa vontade, fizemos
e fazíamos da escada interior o nosso “autocarro” que nos daquela casa paupérrima, um local de vivência agradável
transportava até onde nos levasse a imaginação. O sótão que foi lembrada com saudade pelos tempos fora.
foi dividido por um cortinado e num dos lados ficaram os Aprendi que não é o luxo e o usufruto de bens gran-
meus Pais e nós, do outro. As camas eram de campanha, diosos que nos empolgam, mas sim apenas a simplicidade
os chamados “burros”, compradas na feira da ladra. das pequenas coisas que nos tocam fundo.
Não havia casa de banho mas o meu Pai montou no A casa da Azóia foi realmente um “palácio” para mim.
quintal um chuveiro, numa armação de ferro e lona, onde Dois anos depois entrei no “Pilão”. A simplicidade e o
também colocou um daqueles bidés de esmalte montados desconforto das instalações, quase de ascetas, não causaram,
numa estrutura de verga de ferro. Difícil foi convencer a em mim, qualquer problema.
10 | Boletim da Associação dos Pupilos do Exército