Page 14 - Boletim APE_226
P. 14

cRóNIcAs (cont.)





           crítico  e  de  discernimento,  dos  quais  nunca  abdiquei.   para passar a ser um irredutível sacrifício, a que todos
           perguntam-me  muitas  vezes  a  razão  pela  qual  nunca    temos  de  nos  sujeitar  para  almejarmos  estar  vivos.  já
           escolhi, na altura devida, a minha passagem à categoria   não se trabalha para vivermos, mas sim vivemos quase
           de  oficial.  direi  que  por  uma  certa  dose  de  rebeldia    exclusivamente  para  trabalhar,  sem  que  isso  nada  nos
           e  também  porque  o  estatuto  nunca  esteve  à  frente  do    acrescente  em  termos  de  bem  estar  e  felicidade.  esta,
           meu  sentido  de  dignidade.  assim  sendo,  congratulo-me    a felicidade, é hoje um parâmetro que a moderna e fria
           por  ter  desempenhado  as  mais  diversas  funções,  tanto   economia considera como um exclusivo para um redu-
           técnicas  como  hierárquicas,  fazendo-me  respeitar  e  res-  zido número de abençoados pelo sucesso, sendo que o
           peitando,  sem  nunca  deixar  de  ser  a  pessoa  que  ainda    sucesso  é  também,  hoje  em  dia,  outro  parâmetro  ape-
           hoje  continuo  a  ser,  não  sacralizando  a  hierarquia,  mas   nas  configurado  por  uma  rara  capacidade  de  ambição
           sabendo  com  ela  conviver,  respeitando-me  a  mim  pró-   e  egoísmo.  a  racionalidade  funciona  hoje  como  adubo
           prio e aos outros, fosse qual fosse a patente. a afirmação   duma irracionalidade desmedida, que despreza quem não
           dos  meus  princípios  e  valores  foram  uma  constante  no   vence,  e  vence  aqueles  considerados  desprezíveis  ou
           meu percurso e a leitura do tempo, em cada uma das suas   substituíveis, à luz da ganância dum novo paradigma em
           fases,  um  contributo  indispensável  à  minha  identidade   que apenas a competição e o supérfluo ditam as normas.
           própria  e  ao  meu  perfil  de  homem  livre  e  socialmente   em que apenas o dinheiro conta, na sua vil condição de
           consciente.                                        espelho dum poder desmedido e insensível.
              agora, acolhido na curva indecifrável e quase impre-  esta viagem no tempo que tem a idade da minha vida,
           visível do tempo que me resta, olho para trás e procuro   transportou-me do sonho ao desespero, à raiva e à indig-
           tudo aquilo que poderia ter sido e sinto uma energia e   nação mais profunda. quase tudo aquilo porque almejei
           um sentido de vida que reside numa idade que nada tem   e lutei, se esfumou na névoa dum progresso profunda-
           a ver com aquilo que as pessoas vislumbram no somató-  mente injusto e desigual. o valor do trabalho deixou de
           rio  dos  anos  que  já  se  viveram,  porque  o  meu  futuro   ser a conquista do bem estar, para passar a ser, premedi-
           continua a ser a soma dos sonhos que tive, dos realizados   tadamente, o valor do dinheiro que gera em quem já o
           e dos pendentes e ainda mais de todos aqueles que ainda   tem em demasia. ou então em quem se vende despudo-
           continuo a alimentar em cada manhã em que acordo, sem   radamente para arrecadar o seu quinhão de sucesso, sem
           balizas para a imaginação da vida de cada dia. a minha   vergonha e sem pejo da pobreza que causa à esmagadora
           medida do tempo são os momentos. momentos de ontem   maioria daqueles, cuja única riqueza é o esforço do seu
           e momentos de hoje e o amanhã continua a ser a derra-  saber e dos seus braços. a viagem deste tempo veio acu-
           deira esperança, e muitas vezes, convicção de que quase   mulando desastres evitáveis, mas que são o húmus duma
           tudo precisa de mudar na forma como as pessoas enten-  classe que emergiu dos sonhos da minha geração e deles
           dem  e  planeiam  o  mundo.  e  eu,  tal  como  ontem  ou   se  apoderou,  abastardando-os  e  transmutando-os  em
           ainda  hoje,  faço  parte  dessa  mudança.  muitos  de  nós,   pesadelos para a humanidade, da qual sugam o seu sangue
           transformam-se  ao  longo  da  vida,  outros  permanecem   suor e lágrimas...
           estáticos, deixando os anos devorá-los e disso se queixam   a única alternativa que tenho é manter esses sonhos
           e lamentam. eu continuo insatisfeito e irrequieto e por   vivos, na sua pureza e mesmo ingenuidade. é denunciar
           isso, todos os dias me questiono. todos os dias vou buscar   a fraude desta sociedade que se rendeu ao sucesso fácil,
           ao meu percurso de vida a força dos sonhos que ainda   esquecendo que o sucesso só se justifica se contribuir para
           não se tornaram realidade e acredito que eles são urgen-  uma melhoria global das condições de vida da humani-
           tes e inadiáveis. sou muito mais uma pessoa de dúvidas   dade e se isso for conseguido com justiça, fraternidade e
           do  que  de  certezas,  porque  estas  nos  bloqueiam  esta   verdadeiro sentido social. hoje em dia, olho para o meu
           capacidade de evoluirmos na forma do pensamento e na   país e só consigo ver um amanhã que não contempla a
           busca das soluções. quem cultiva as certezas, nega a sua   grande maioria dum povo que já teve futuro. hoje em dia,
           condição de ser racional e eternamente incompleto, por-  alguém lhes roubou o futuro. aos mais velhos, o futuro
           que a perfeição é um antídoto da evolução da mentali-  dos seus últimos dias e aos jovens, o futuro duma vida
           dade humana, diria antes, humanista.               toda.  somos  órfãos  de  nós  próprios  e  do  monstro  que
              infelizmente,  vivemos  hoje  dias  de  desesperança  e   vimos crescer e acreditámos ter alma e coração...
           quase  capitulação,  perante  o  avanço  duma  deturpada   a única alternativa é mesmo acreditar no sonho, por
           mentalidade que reduz os sonhos a números e o direito   mais que nos digam que o sonho é irrealizável, porque
           à vida, a uma cruel campanha, em que tudo vale para    as realidades sempre nasceram do impossível e quando
           se ser mais, melhor, mais diferente e mais poderoso do   nascem do conformismo, rapidamente se transformam em
           que todos os outros. o trabalho deixou de ser um direito   pesadelos, em fraudes ou em tirania…



           12  |  Boletim da Associação dos Pupilos do Exército
   9   10   11   12   13   14   15   16   17   18   19