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                                  viagem no tempo


           ERNâNI BALSA
           19600300




               á dias em que damos connosco a viajar no tempo que   minha memória apenas regista dados e episódios da minha
           hjá passou. no tempo que demorámos a chegar até aqui   pré-adolescência.  são  memórias  de  brincadeiras  na  rua,
           e do qual nem nos demos conta de que também faz par-  com  as  crianças  da  vizinhança,  nas  franjas  do  bairro  de
           te  do  nosso  percurso,  que  muitas  vezes  julgamos  ser   campolide, onde a diversão se dividia entre campeonatos
           apenas aquele que nos acompanha a memória mais recen-  de caricas, devidamente artilhadas com casca de laranja
           te, aquela que não nos confronta com a idade que temos.   ou  tangerina,  para  lhes  dar  peso  e  aderência  às  pistas
           não que a idade seja para mim um constrangimento, nem   traçadas a giz no alcatrão ou nos lancis dos passeios, ou
           um  peso  que  me  impeça  de  continuar  activo,  rebelde,   então a tradicionais jogos de “bilas”, os coloridos berlindes
           insatisfeito e mesmo irrequieto, na construção duma exis-  de vidro da época, numa configuração de três covas cava-
           tência  em  que  me  obrigo  a  renascer  todos  os  dias  e  a   das em chão de terra, e ainda a aventuras vividas ao vo-
           sentir-me suficientemente vivo e livre para tudo questio-  lante de carros velhos ou em reparação numa oficina que
           nar e tudo reconstruir, mas os sessenta e três anos que já   havia  na  travessa  do  tarujo.  a  tudo  isto  somava-se  um
           levo nesta jornada de vida, permitem-me olhar para trás,   protecionismo  quase  doentio,  por  parte  dos  meus  pais,
           por cima do ombro, e ter a capacidade de poder apreciar   sempre com o natural medo de que qualquer coisa me
           a dimensão deste tempo e do seu impacto naquilo que   acontecesse.
           hoje sou.                                             o  final  da  minha  infância  confunde-se  naturalmente
              o  tempo  é  sempre  uma  dimensão  pouco  exacta  e   com  o  início  da  minha  pré-adolescência  e  marca  uma
           traiçoeira, porque medida conjuntamente com aquilo que   mudança radical, que tem a ver com a minha entrada para
           convencionámos considerar de envelhecimento. e o enve-  os pupilos. antes ainda, um ano de frequência do primei-
           lhecimento  tem  uma  conotação  negativa  e  tendenciosa.   ro ano do liceu, no dom joão de castro, no alto de santo
           sermos velhos é algo de que muitos não se orgulham. já   amaro, tudo isto em lisboa, cidade berço da minha exis-
           foi, noutros tempos e conjunturas, sinónimo de respeito   tência, concede-me um raro, mas redutor contacto com a
           e mais-valia, um capital de experiência e conhecimento   vida como ela era. as idas em grupo às sessões da tarde
           que  a  sociedade  reconhecia,  respeitava  e  disso  retirava   do jardim cinema ou do paris, ali no triângulo do largo do
           proveito  para  um  crescimento  sustentado  e  racional  de   rato,  da  estrela  e  campo  de  ourique.  salas  de  cinema  já
           todos.  hoje,  ser  velho,  é  algo  socialmente  incorrecto,  de    devoradas,  não  tanto  pelo  tempo,  mas  muito  mais  pela
           tal  modo  que  se  inventaram  novas  designações,  como   insensibilidade cultural e social dos que decidem as cida-
           sénior ou idoso, para amenizar uma decadência anunciada   des.  sol  de  pouca  dura,  pois  no  final  do  ano  lectivo,  os
           daqueles  que  já  não  se  ajustam  às  vorazes  necessidades   meus  pais  candidatam-me  aos  pupilos  e  finalmente,  no
           duma  sociedade  avidamente  produtiva  e  rentabilizável.   início da época, talvez mais emblemática da minha vida,
           ser velho colide impiedosamente com não ser produtivo   em mil novecentos em sessenta, transito para um mundo
           e por via disso, ser velho contabiliza-se não só em idade,   à  parte.  não  é  minha  intenção  fazer,  aqui  e  agora,  uma
           mas principalmente em índices friamente numéricos de   condenação a esta opção economicamente justificada dos
           despesa,  déficit  e  encargos  sociais,  que  cada  vez  mais   meus pais, nem branquear ou diabolizar os nove anos em
           precisam de ser reduzidos, enquanto não há coragem para   que estive afastado do mundo real, entre são domingos de
           os eliminar definitivamente. não se ser produtivo, cai mal,   benfica e a estrada de benfica, mas à distância, usando o
           à luz do figurino das tendências actuais da economia, e o   tempo  agora  como  catalisador  duma  reflexão  inadiável,
           facto de se ter sido contributivo toda a vida, passa a ser   reconheço  que  um  regime  de  internato  é  sempre  uma
           apenas um detalhe sem importância e sem direito a res-  opção contra-natura, não obstante os pontos positivos que
           peito social.                                      nela se possam encontrar e que existiram, sem dúvida. não
              o tempo que coincide com a minha idade cronológica   posso, no entanto, deixar de reconhecer que os nove anos
           começa  em  mil  novecentos  e  quarenta  e  nove,  mas  a   que  vivi  neste  regime,  constituiram  um  hiato  do  meu




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