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cRóNIcAs
Uma folha solta do meu diário
O meu mais bonito presente
JOSÉ CRUz E COSTA de Natal
19620265
rovavelmente foram 20 anos ou talvez muitos mais, terpretações, por maior dimensão que, como esta, possam
Ptal a forma de quase luto a que, então, me remeti e assumir podem não conseguir evitar-se, mas têm obriga-
tão sentido e tão vivido ele foi. Recordo como se de re- toriamente de se resolver porque o momento, seja ele qual
pente me tivessem arrancado partes do corpo, tipo uma for, não se pode submeter à vida, e esta, alimenta-se de
mão ou um pé, ou que me tivesse morrido alguém muito bom senso, da coragem e de uma dimensão que extravasa
próximo, daquele tipo de pessoas de quem gostamos a emoção.
mesmo muito e que nem os pêsames nem as condolências Mas de cada vez que a coragem parecia inabalável
de circunstância dos outros, ou do mundo inteiro, conse- para que eu me aproximasse, algo acontecia, seja porque,
guem mitigar a dor lancinante que se sente. afinal, eu já não ia ao Porto ao contrário do previsto, seja
Foi isso, exactamente isso, que aconteceu talvez há porque, tendo indo, o tempo escasseava e o tempo, sem-
vinte anos, diria certamente que mais, porque vinte anos pre o tempo, me empurrava para adiar e tornar a adiar
eu sou capaz de contar, é-me fácil fazê-lo, e correspondem aquilo que há muito, mesmo há muito, deveria ter sido
a um lapso de tempo, bem delimitado, com contornos invertido com a tal coragem que as pequenas grandes
precisos entre as datas definidas. Porém isto o que fui acções sempre carecem. Às vezes o medo da rejeição era
sentindo não tem contornos definidos, não contempla o último argumento, mas quiçá o mais impeditivo, e que
lapsos de tempo que se enquadrem em qualquer calendá- definitivamente me afastava de tentar falar. Como é que
rio. Não tem tempo nem tem limites para o tempo, porque a Dida iria reagir? Ela, que dos meus 12 até aos 18 anos,
há acontecimentos que, pela importância a que se elevam, tinha sido minha encarregada de educação e que tanto
extravasam o próprio conceito temporal a que estão asso- me admirava e de quem eu tanto gostava? E a Gina,
ciados. Somente aconteceu, violento, há muito tempo e sempre arisca, mas sempre tão disponível? E a Bina, se-
há muito tempo deixou-me prostrado, com a voz tantas nhora professora, a quem o dolorosíssimo e cobarde in-
e tantas vezes embargada pela incompreensão e pela an- fortúnio de ficar viúva tão cedo lhe bateu à porta? Afinal
gústia profunda e que, desde então, dia após dia, ano após de contas elas eram minhas primas, mais velhas, mas
ano, foi desgastando e corroendo, pela ausência, até quase todas elas, cada uma à sua maneira, mas mais principal-
fazer desaparecer tudo – e tanto que era! – o que serviu mente a minha saudosa Tia Isabel, sua Mãe extremosa,
para crescermos e que à memória emocionada se remetia com interferência importante na minha adolescência onde,
dolorosa e permanentemente. com os meus Pais em África, souberam substituir o cari-
O passar da idade faz-nos viver, mas também nos faz nho e o amor que eu deixara de ter desde tenra idade.
pensar que vivemos, sem o fazermos. Provavelmente não Era como se fossem três irmãs e a minha Tia quase uma
é com a idade que a sapiência floresce, mas é com certe- segunda Mãe. Como era possível que todo este sentimen-
za somente a idade que é capaz de nos fazer redescobrir to tivesse sido substituído durante vinte anos, ou muito
a beleza oculta do que é verdadeiramente importante e mais do que isso, por uma ausência de tudo ou um vazio
de quão importante é ser verdadeiro perante a vida. Sem de nadas onde, perdido, me deixei vaguear à espera pro-
o querermos, sem o notarmos conscientemente, vamos vavelmente da idade? Zangados estivemos, eu sei. Extre-
juntando anos e mais anos à vida sem que dê-mos vida mámos todas as posições com a irracionalidade de quem
aos anos que vamos deixando passar. pensa que é dono do Mundo e que o Mundo domina.
Havia já muitos anos que eu me dizia a mim próprio Esquecemos sentimentos fortes, apagámos memórias que
que tinha de lhes telefonar, de lhes tentar falar e de lhes são indestrutíveis e quisemos caminhar isolados ao longo
dizer, não interessava a qual delas, que eu queria voltar a dos anos em que construímos e destruímos destinos e
tê-las na minha família, que elas eram a minha família, ambições como se o nosso umbigo fosse suficiente para
porque me pertenciam como sempre me pertenceram e albergar tudo. Não é! Nem pode ser, porque nenhum
que sem elas todo este edifício construído com amor tinha umbigo pode ser suficientemente fundo que possa conter
um sentido bem pequeno, muito pequeno para o imenso as emoções de laços que têm a força suficiente para não
significado que a família deve ter. As zangas e as más in- se desfazerem nunca.
16 | Boletim da Associação dos Pupilos do Exército