Page 14 - Boletim APE_224
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cRóNIcAs (cont.)





              Enquanto eu comia o pastel de queijo, uma mulher na   cidade do norte da Argentina na fronteira com o Paraguai
           mesa ao lado tirou um cigarro de um maço, com calma,   então governado pelo ditador Alfredo Stroessner) perso-
           e esperou que o seu acompanhante acendesse o isqueiro.   nagem do romance de Graham Greene.
           A televisão do bar estava ligada e fiquei atento para algu-  O líder criminoso instalara uma refinaria de cocaína na
           ma informação sobre a invasão da Rocinha, mas estava a   Rocinha, vendia cerca de duzentos quilos por semana, coman-
           conhecida  apresentadora  Hebe  Camargo  que  travava  o   dava uma quadrilha de duas centenas de bandidos e tinha
           seguinte diálogo com um jovem cantor: “Você encontrou   uma facturação avaliada em quarenta milhões de euros por
           alguém ou alguma?”/ “Você sempre me consegue deixar   ano. Dinheiro suficiente para corromper autoridades, eleger
           sem graça, Hebe.”/ “Tá sem graça, por quê?”/ “Eu sou uma   políticos, mandar matar adversários e fazer alguma assistên-
           pessoa tímida”, respondeu o cantor com falsa timidez/ “No   cia social para assegurar a sua implantação junto à popula-
           quarto, você também é tímido?”, uma panorâmica sobre   ção local mais pobre. O costume desde que o crime se in-
           mesas circulares com convidados de Hebe vestidos a rigor,   tegrou à sociedade, na época moderna desde Al Capone ou
           o  governador  do  Estado  de  S.  Paulo  acompanhado  da   Baby Face Nelson, nos E.U.A. dos anos da lei seca.
           esposa com um vestido longo, o ex-candidato a Presiden-  Agora,  o  temido  bandido  tem  direito  apenas  a  duas
           te da República, José Serra, e depois os comerciais, fabri-  horas  de  banho  de  sol  por  dia  na  penitenciária  e  o  seu
           cantes de leite condensado, moveis, tintura para o cabelo,   futuro é no mínimo perigoso. “A função do futuro é ser
           bancos a oferecerem empréstimos a serem descontados na   perigosa”, disse Alfred North Whitehead, mas ao referir-me
           folha  de  pagamento…  Mas  na  madrugada  desse  dia,  ao   anteriormente a Jonh Cheever esqueci-me de mencionar
           fim de dez anos de vida criminosa, Nem, o bandido mais   o mais recente livro de Rubem Fonseca, intitulado “José”,
           procurado  do  Brasil,  foi  preso  quando  fugia  da  favela,   que acabara de comprar e tinha sobre a mesa do bar. Nele,
           escondido no porta-malas de um carro que não pôde ser   o autor brasileiro refere-se a uma escritora analfabeta, um
           revistado por o motorista ter alegado imunidade diplomá-  caso único, Catarina de Siena que viveu no século XIV
           tica ao identificar-se como cônsul honorário da República   em Roma, mas que era santa e o facto de escrever pode-
           do Congo. Posteriormente a Embaixada em Brasília negou   ria  ser  considerado  um  milagre,  talvez  a  salvação  como
           o  estatuto  do  cônsul.  Conheço  cônsules  honorários  de   disse Cheever ou para se defender dos perigos do futuro
           vários países com quem não gostaria de me encontrar à   previstos por Whitehead. Talvez o Nem se torne um es-
           noite num beco escuro. Sujeitos que não têm a estatura   critor na prisão pensei enquanto levava o cigarro à boca.
           do “Cônsul honorário” (da Grã-Bretanha numa pequena   Como ninguém acendeu um isqueiro eu próprio o acendi.














































           12  |  Boletim da Associação dos Pupilos do Exército
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