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cRóNIcAs (cont.)
Enquanto eu comia o pastel de queijo, uma mulher na cidade do norte da Argentina na fronteira com o Paraguai
mesa ao lado tirou um cigarro de um maço, com calma, então governado pelo ditador Alfredo Stroessner) perso-
e esperou que o seu acompanhante acendesse o isqueiro. nagem do romance de Graham Greene.
A televisão do bar estava ligada e fiquei atento para algu- O líder criminoso instalara uma refinaria de cocaína na
ma informação sobre a invasão da Rocinha, mas estava a Rocinha, vendia cerca de duzentos quilos por semana, coman-
conhecida apresentadora Hebe Camargo que travava o dava uma quadrilha de duas centenas de bandidos e tinha
seguinte diálogo com um jovem cantor: “Você encontrou uma facturação avaliada em quarenta milhões de euros por
alguém ou alguma?”/ “Você sempre me consegue deixar ano. Dinheiro suficiente para corromper autoridades, eleger
sem graça, Hebe.”/ “Tá sem graça, por quê?”/ “Eu sou uma políticos, mandar matar adversários e fazer alguma assistên-
pessoa tímida”, respondeu o cantor com falsa timidez/ “No cia social para assegurar a sua implantação junto à popula-
quarto, você também é tímido?”, uma panorâmica sobre ção local mais pobre. O costume desde que o crime se in-
mesas circulares com convidados de Hebe vestidos a rigor, tegrou à sociedade, na época moderna desde Al Capone ou
o governador do Estado de S. Paulo acompanhado da Baby Face Nelson, nos E.U.A. dos anos da lei seca.
esposa com um vestido longo, o ex-candidato a Presiden- Agora, o temido bandido tem direito apenas a duas
te da República, José Serra, e depois os comerciais, fabri- horas de banho de sol por dia na penitenciária e o seu
cantes de leite condensado, moveis, tintura para o cabelo, futuro é no mínimo perigoso. “A função do futuro é ser
bancos a oferecerem empréstimos a serem descontados na perigosa”, disse Alfred North Whitehead, mas ao referir-me
folha de pagamento… Mas na madrugada desse dia, ao anteriormente a Jonh Cheever esqueci-me de mencionar
fim de dez anos de vida criminosa, Nem, o bandido mais o mais recente livro de Rubem Fonseca, intitulado “José”,
procurado do Brasil, foi preso quando fugia da favela, que acabara de comprar e tinha sobre a mesa do bar. Nele,
escondido no porta-malas de um carro que não pôde ser o autor brasileiro refere-se a uma escritora analfabeta, um
revistado por o motorista ter alegado imunidade diplomá- caso único, Catarina de Siena que viveu no século XIV
tica ao identificar-se como cônsul honorário da República em Roma, mas que era santa e o facto de escrever pode-
do Congo. Posteriormente a Embaixada em Brasília negou ria ser considerado um milagre, talvez a salvação como
o estatuto do cônsul. Conheço cônsules honorários de disse Cheever ou para se defender dos perigos do futuro
vários países com quem não gostaria de me encontrar à previstos por Whitehead. Talvez o Nem se torne um es-
noite num beco escuro. Sujeitos que não têm a estatura critor na prisão pensei enquanto levava o cigarro à boca.
do “Cônsul honorário” (da Grã-Bretanha numa pequena Como ninguém acendeu um isqueiro eu próprio o acendi.
12 | Boletim da Associação dos Pupilos do Exército