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cRóNIcAs (cont.)





           nem afoitos e que se nota carregarem em si uma deses-
           perança eivada de resignação. rosa maria! as pessoas têm
           também o nomes de flores, e como elas viçam e murcham
           e esmorecem, de acordo com as oportunidades da vida.
           rosa sempre foi maria, mas as pétalas que antes lhe co-
           nhecera viçosas e brilhantes, embora quase sempre pen-
           sativas,  mas  também  doces,  emolduravam-lhe  a  face,
           agora vazia de brilho e de esperança. voltou a cabeça, o
           olhar  e  reconheceu-nos.  aproximou-se  e  por  instantes
           perscrutei-lhe de novo o fulgor do olhar e uma instintiva
           alegria no reencontro. aproximou-se e acedeu ao convite
           para connosco se sentar e sabermos dela.
              a  rosa  maria  estava  desempregada,  já  o  sabíamos.
           apesar  do  apelo  que  todos  sentimos  pelo  tempo  livre
           que nos ilude sobre as contingências da vida, ele só nos
           é favorável quando não nos amachuca a auto-estima de
           nos sentirmos em dívida para com ela, quando ela não
           nos oferece os instrumentos indispensáveis a construirmos
           os  nossos  passos,  a  definirmos  as  nossas  prioridades  e
           delas  erguermos  os  nossos  sonhos.  o  desemprego  é  um
           fardo  e  um  estigma  que  nos  acabrunha  e  deforma  os
           nossos  pontos  de  vista  sobre  o  futuro.  e  a  rosa  maria   sempre aquele brilho de menina perdida entre os demais,
           carregava esse fardo todo, grande demais para a sua pe-  que  se  procurava  a  si  própria  e  não  se  encontrava  da
           quena e frágil estatura de jovem mulher sózinha na ci-  forma que ela ambicionava.
           dade.                                                 abrantes  era  uma  saída  possível,  quiçá  temporária,
              noutros tempos, não muito distantes, ela tinha sido a   para se abrigar de novo no seio da família e tomar balan-
           nossa anfitiã de estimação  no  café para fumadores  que   ço para nova incursão na cidade grande a que ela já se
           tinhamos  descoberto,  ali  perto,  e  onde  nos  acolhíamos    habituara. sentia-lhe isso nas palavras com que se ia re-
           da pesada ditadura dos espaços livres de fumo, em nome   velando,  mas  a  sua  independência  pesava  muito  mais,
           duma asséptica noção da saúde pública. era ela, sempre   numa ânsia desmedida de criar o seu próprio espaço e
           com  um  sorriso  tímido,  mas  ao  mesmo  tempo  acolhe-   dele erguer um qualquer futuro que agora lhe era difícil
           dor, que nos trazia os cafés e as águas com que regáva-   imaginar.
           mos as nossas conversas e às quais ela frequentemente se   despediu-se, sempre com aquela doçura no olhar, que
           associava,  sempre  com  aquele  olhar  doce  e  meigo  de   lhe conhecera e deixou-me um travo amargo na consci-
           menina carente de afectos e de atenção, que nos confes-  ência. um travo de incomodidade e de revolta por senti-
           sara gostar de desenhar e que nos revelara a sua ascen-  la na encruzilhada dum labirinto que ela não conseguia
           dência  caboverdiana,  diminutamente  já  perceptível     resolver.  talvez  a  voltasse  a  encontrar,  num  outro  dia
           dos traços que a consaguinidade de cruzamentos vários   qualquer, naquela esquina da vida e a pudesse reconhecer
           lhe emprestava e fazia dela apenas uma menina morena   muito mais rosa que maria. viçosa e fulgurante, se bem
           e de perfil tremendamente sereno. tínhamos também fi-  que com aquele eterno olhar de menina perdida e doce,
           cado a saber da sua infância passada em abrantes, de onde   mas crente num futuro qualquer que lhe trouxesse uma
           viera  em  busca  de  oportunidades  na  cidade  grande  e   alegria maior. uma serenidade que ela já tinha, mas que
           também em busca de si própria, na solidão que aparen-  hoje estava perturbada pelo peso imenso duma incapa-
           tava.                                              cidade de compreender os desafios crueis da vida que lhe
              agora, ali sentada, revendo amizades que não o seriam   caíam em cima.
           em toda a dimensão desse conceito, mas que se exprimiam   rosa  era  também  maria,  mas  os  espinhos  da  flor  do
           numa cumplicidade de mais velhos que facilmente co-  seu  nome  torturavam-na  no  sonho  que  queria  acredi-
           municavam com ela, olhava-a e sentia nela todo o drama   tar  ser  também  possível  para  ela.  menina  de  abrantes,
           de quem não vislumbra o futuro, sabendo no entanto que   de  olhos  doces,  desenhos  ingénuos  e  rabiscados  pelos
           ele  existe.  as  portas  nem  sequer  se  lhe  abriam,  porque   intervalos da sua busca, no labirinto da cidade. continuei
           ela nem as descortinava na sua busca diária de um novo   ainda  sentado  a  deixar  correr  aquele  fim  de  tarde,
           emprego. o olhar era o mesmo, mas turvo pela impotên-  quase  noite,  dum  domingo  que  nem  sempre  nos  traz
           cia de se afirmar num mundo em que nada lhe parecia   felicidade.
           sorrir.  tinha  um  não  sei  quê  de  angústia  e  desconsolo.   e a felicidade será o quê, sem o bem estar dos outros?...


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