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cRóNIcAs
rosa, que é também maria
ERNâNI BALSA
19600300
s tempos que correm fazem-nos por vezes ficar factos, que embora possam ser mudados, são indesmen-
Oagarrados a factos e a situações que julgamos serem tíveis.
o fim de tudo ou o princípio de um outro tempo que mas no meio de tudo isto, reforço o óbvio, existem
nunca nos devolverá as recordações dum passado em que pessoas… as esquinas das cidades podem parecer todas
nos julgávamos a caminho dum bem estar sempre cres- iguais, mas cada uma tem o seu enredo. esta podia acon-
cente. a sensação de que a vida era um caminho progres- tecer em qualquer outra cidade. em londres. paris. varsó-
sivo de felicidade e progresso, de que o simples facto de via ou helsínquia. mas era em lisboa. poderia ser em
existirmos e assistirmos a esse progresso, era a certeza de qualquer lugar, mas as esquinas de lisboa têm a identi-
que amanhã viveríamos ainda melhor e deixaríamos às dade de quem cá vive e o perfil dos olhares que se cruzam
gerações vindouras um mundo repleto de oportunidades vindos de cada lado do seu encontro. era uma tarde de
e justiça social, mesmo que não soubéssemos ao certo domingo, fim de dia. o sol cansado de tentar aquecer uma
qual a via para lá chegar, fazía-nos sentir um conforto tarde de preguiça e de modorra, esgueirava-se já pela
existencial assente na fé de que nada iria parar esta es- linha do horizonte, deixando entrelaçar os tímidos raios
piral dum futuro bem resolvido e óbvio… andámos anos de luz com o cintilar dos candeeiros da cidade, que pa-
e anos inebriados por nós próprios e como que hipnoti- reciam pinceladas de luz ocre a esbaterem-se sobre as
zados por uma evolução que acontecia quase que por fachadas dos prédios e das copas das árvores.
magia… era assim e pronto!... uma esplanada naquela esquina parecia ser um en-
estamos agora a chegar à conclusão, mesmo que ainda quadramento perfeito, como se ela não tivesse querido
incrédulos, que afinal tudo não passou daquilo a que existir sem aquele local de convívio aconchegado na
se pode chamar um sonho bonito… a vida real está ago- sua curvatura laça e espaçosa. sentámo-nos. a tarde, ape-
ra aí, em toda a plenitude da sua crueldade e dure- sar da hora de fecho do sol, estava amena e envolvente,
za… mas não era realmente disto que eu vos queria hoje sem brisa que incomodasse e a aproximação da noite
falar… vocês todos, que me lêem, dirão, lá vem ele outra dava-lhe um ar de crepúsculo dourado e brilhante. quan-
vez com aquela dose de revolta e angústia…. e têm ra- do um domingo está prestes a acabar, as pessoas dis-
zão… ela existe, persiste e desenvolve-se, mas é certo que põem-se a prolongá-lo, numa remota e última esperança
podemos escrever o mesmo duma outra forma que nos de que o inevitável bulício da semana lhes não inter-
leve a pensar, a reflectir e a questionarmo-nos sobre o rompa aquela sensação de serenidade e tranquila letargia
porquê de toda esta antecâmara de caos que se prenun- que lhes ameniza o ciclo do trabalho e da luta por um
cia… qualquer amanhã que ninguém sabe muito bem o que
prefiro hoje falar-vos de pessoas, do elemento mais lhes vai trazer. todos anseiam por um futuro que acredi-
crucial, a seguir à natureza que nos suporta e envolve, tam estar no final de uma vida de labuta, mas todos
porque determinante nas atitudes e acções que podem tendem a adiar e mascarar essa quimera de descanso e
definir o futuro e repensar o passado. o que é na reali- lazer, quando o fim do domingo se aproxima. e as pes-
dade uma pessoa?... nascemos dum milagre da nature- soas procuram os espaços calmos e acolhedores da cida-
za, para o qual ainda não encontrámos explicação, cres- de para esta iminência do esvaziamento da sua folga
cemos, evoluímos e tentamos, cada um à sua maneira, semanal.
contribuir para o bem comum, mas muitos de nós temos sentámo-nos e deixámo-nos ali ficar numa conversa
ideias muito próprias do que é esse valor do bem comu- de rotina e sem assunto, dependurados naquele exercício
nitário, uma vez que a noção de comunidade não é um de nada fazer, de nada nos preocupar, como que sorven-
valor absoluto e único. cada um ou cada grupo conside- do os últimos goles duma bebida, quando se sabe que o
ra a comunidade aos olhos e sentimentos do meio que copo vai ficar vazio, no final do acto em si, de saborear
o envolve e lhe determinou o crescimento. a existên- um pedaço de vida sem um amanhã que nos viesse a
cia de classes sociais é inegável e sê-lo-á para um sem- preocupar. de repente um vulto que dobra a esquina e
pre, para o qual ainda não temos noção do limite. são se vai perder na dobra da cidade, em passos, nem lentos
14 | Boletim da Associação dos Pupilos do Exército