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geralmente maneira de o absorver no talha são, portanto, na opinião de ambivalentes como as geradas pela
grupo, e uma vez que não pode ser en- Harris, “sacrifícios” no sentido de se situação edipiana em sociedades mi-
viado de volta para o inimigo, tem de dizer que as suas mortes agradam aos litaristas. É de esperar que a guerra
ser morto. E a tortura tem a sua eco- antepassados ou aos deuses da guer- produza emoções contraditórias e
nomia macabra própria. Se ser tortu- ra, tal como se diz que aos antepassa- que signifique muitas coisas simulta-
rado é, como se diz, morrer mil mor- dos agradam a tortura e a morte de neamente para os participantes.
tes, então torturar um pobre cativo é um prisioneiro. (Idem, op.cit., p. 151) Quanto ao canibalismo, para além
matar mil inimigos. Observa Marvin Por fim temos a questão do cani- de forma de suprimento proteico
Harris que a tortura é também um es- balismo. As pessoas podem aprender principalmente nas populosas socie-
pectáculo – um divertimento – que a gostar ou a não gostar do sabor da dades estatais meso americanas, pode
tem sido posto à prova para aprova- carne humana, tal como podem expressar tanto afeição como ódio
ção das audiências ao longo das épo- aprender a sentirem-se divertidas ou para com a vítima. Mas o que Marvin
cas. (Marvin Harris, op.cit., p. 150) horrorizadas pela tortura. É evidente Harris rejeita- com o que concordo - é
Esta análise não implica que gos- que há muitas circunstâncias nas o ponto de vista de que os padrões es-
temos instintivamente de ver outra quais um gosto adquirido pela carne pecíficos de agressão intergrupos
pessoa sofrer, mas que temos a capa- humana pode ser integrado no siste- possam ser explicados por elementos
cidade de aprender a gostar disso. A ma motivacional que inspira as socie- psíquicos vagos e contraditórios au-
consciência dessas capacidades foi dades humanas a irem para a guerra. daciosamente abstraídos de pressões
importante para sociedades como os Além disso, comer o inimigo é literal- ecológicas e reprodutivas específicas.
Tupinambás e os Huron. Trata-se de mente sacar força da sua aniquilação.
sociedades que tinham de ensinar os O que tem, pois, de ser explicado (e Bibliografia
seus jovens a ser implacavelmente é-o, certamente) são as razões civili- Jorge Couto, A Construção do Brasil, 1.ª
brutais para com os seus inimigos no zacionais que levaram várias cultu- edição, Lisboa, Cosmos, 1995.
campo de batalha, como forma de so- ras a absterem-se de comer carne hu- Carlos Fausto, Os índios antes do Brasil,
brevivência. Diz o mesmo autor que mana, apesar de continuarem a parti- 3.ª ed., Rio de Janeiro, Jorge Zahar, Editor,
se deve acrescentar ao valor do pri- cipar em guerras. 2005 [1.ª ed. 2000]
sioneiro o seu corpo vivo, que está Esta digressão na avaliação mili-
Marvin Harris, Canibais e Reis, Col. Pers-
para o treino dos guerreiros como os tar dos custos como explicação para o pectivas do Homem, Lisboa, Edições 70,
cadáveres para o treino dos médicos. complexo guerra-sacrifício-antropo- 1990 [Cannibal and Kings-The origins of cultu-
A seguir vêm os rituais da matança. fagia, não exclui a possibilidade de res, 1.ªed. líng. inglesa, 1977]
Os inimigos mortos no campo de ba- existirem motivações psicológicas
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