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Cultura &   VAMOS FALAR DE óPERA  O ACORDO ORTOGRáFICO NÃO É uMA HECATOMBE                    Cultura &
 Actualidade                                                                                Actualidade


                  Acordo  Ortográfico  de  1990   te, para o registo escrito de produções lin-  uso do hífen é já prática corrente, ao abrigo
                  saltou para as páginas dos jor-  guísticas que, no seu conjunto, remetem   no Acordo anterior, de 1945. Quem se re-
                  nais  quando  se  percebeu  que   para um sistema abstracto a que chama-  volta com esta tergiversação finge ignorar
                  podia  vir  a  acontecer  aquilo   mos língua. Depois, há que recorrer aos nú-  que decorar todas as regras do hífen que
         Oque aconteceu: ser promulga-        meros:  se  o  Acordo  vem  alterar  apenas   vêm nos prontuários não é tarefa huma-
         do  pelo  Presidente  da  República  (a   1,6% da forma gráfica das palavras do por-  na. Quem é tão intolerante contra a possi-
         21/07/08) e entrar em vigor (com a agência   tuguês europeu, em que medida pode con-  bilidade de haver duas grafias possíveis,
         Lusa na dianteira, a 30/01/09).      vulsionar  todo  o  regime  ortográfico  em   esquece-se que até aqui sempre foi possí-
                           Os  opositores  ao   que hoje placidamente escrevemos?  vel escolher entre «insonso» e «insosso»,
                           acordo  não  foram    Há que dizê-lo: o texto do Acordo é bas-  «rotura»  e  «ruptura»,  «assunção»  e  «as-
                           (nem  são)  meigos.   tante  mau.  Está  cheio  de  contradições  e   sumpção», «fêvera» e «febra», etc.
                           Referiram-se-lhe   ambiguidades e assenta em pressupostos   O novo Acordo é a morte do nosso pa-
                           como «o fim da or-  teóricos que, mesmo em 1990, estavam já   trimónio  linguístico?  Claro  que  não.  As
                           tografia»,  o  «caos   mais do que ultrapassados.       novas  regras  contam-se  pelos  dedos  de
                           ortográfico  (Antó-   Os resultados já se vêem. O Vocabulário   uma mão, são cinco: (i) acrescentaram-se
                          nio  Emiliano,  Pro-  Ortográfico  da  Língua  Portuguesa,  editado   três letras ao alfabeto, (ii) tiraram-se uns
                          fessor da Universi-  pela Porto Editora e organizado pelo Pro-  (poucos) acentos agudos, (iii) suprimiram-
                          dade  Nova  de  Lis-  fessor João Malaca Casteleiro, apresenta e   se alguns hífenes, (iv) há mais palavras a
                          boa), uma «Ota or-  justifica  soluções  que  expressamente  in-  escreverem-se com minúscula e (v) as con-
             Ana Martins
                          tográfica»,  uma    cumprem as normas do Acordo. Isto já é   soantes que não se pronunciam não se es-
                          «aberração!»  (Vas-  por si estranho, mas se pensarmos que o   crevem. É isto.
         co  Graça  Moura).  A  estas  vozes  junta-  próprio João Malaca Casteleiro participou   O esboroar da ortografia não está aqui.
         ram-se  outras,  rumo  ao  manifesto  Em   na elaboração do texto do Acordo, a estra-  Ele tem estado a acontecer, sim, à margem
         defesa da língua portuguesa, que recolheu   nheza aumenta consideravelmente. Outro   dos acordos ortográficos, precisamente no
         milhares de assinaturas.             (mau)  resultado  está  na  não  completa   seio das instituições que o deviam evitar:
            Mesmo quem não saiba (nem queira   coincidência entre a lista de formas do re-  na imprensa e na escola. Lemos nos jor-
         saber) nada da polémica sobre o Acordo   ferido  vocabulário  e  as  do  Vocabulário da   nais “trocas” como «permitirão» por «per-
         Ortográfico verá que estes críticos não es-  Língua Portuguesa, produzido pelo Institu-  mitiram»,  «podermos»  por  «pudermos»,
         tão a fazer a uma avaliação objectiva da   to  de  Linguística  Teórica  e  Computacio-  «vêem»  por  «vêm»,  «ocorrer»  por  «acor-
         questão.                             nal: por exemplo, o primeiro propõe «pri-  rer», etc. Um professor do ensino básico e
            Primeiramente, a mudança ortográfi-  meiro-ministro», «secretário-geral» e «se-  secundário passa a vida a corrigir erros do
         ca não pode ser um desastre linguístico,   gunda-feira», com hífen, e o segundo, sem   tipo  “matousse”,  “defendião”,  “passace”,
         porque a língua não está encerrada na or-  hífen…                         “basiado”, “aconce-lho”, “adoenceu”, “de-
         tografia. A ortografia é apenas um instru-  Quem  se  choca  profundamente  com   zerto”, “curajosa”…
         mento, fruto de uma convenção conscien-  isto esquece-se de que a aleatoriedade no   O caos é este.












































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