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Escritas


                  ESTUDO COmPARATIVO COm OUTRAS SOCIEDADES AmERíNDIAS

                  m  artigos  anteriores  (Bole-  com vários outros companheiros en-  municação entre as várias sociedades
                  tins nºs 211, 212 e 215) vimos   quanto pescavam no Lago Ontário. O   ameríndias, e pode afirmar-se que de-
                  vários aspectos da vida dos   chefe huron encarregue do ritual ex-  senvolveram, por exemplo, um siste-
                  Tupinambás,  descendentes   plicou que o Sol e o deus da guerra fi-  ma de comunicações entre o interior e
         Edos  Tupis,  inclusive  abor-       cariam contentes com o que iam fazer.   a costa atlântica. Um dos casos para-
         dámos o ciclo guerra – vingança – an-  Era  importante  não  matar  a  vítima   digmáticos era, no Brasil, o caminho
         tropofagia.  Hoje  continuaremos,  fa-  antes do nascer do dia, de forma que   de  Peabiru,  a  grande  via  ameríndia
         zendo um estudo comparativo.         iam começar por lhe queimar apenas   que ligava o sertão ao litoral, em que
                               Antes,   po-   as pernas. Também não deviam pra-    um dos seus ramos permitia estabe-
                          rém, retomo o avi-  ticar o acto sexual durante a noite. O   lecer  contactos  entre  a  região  onde
                          so anterior de que   prisioneiro,  de  mãos  atadas,  que  al-  viria  a  ser  fundada  a  cidade  de  As-
                          alguns  factos  re-  ternadamente  guinchava  de  dor  e   sunção, o planalto de Piratininga e a
                          latados neste arti-  cantava uma canção de desafio apren-  actual costa vicentina.
                          go  são,  evidente-  dida  em  criança  exactamente  para   Os  povos  dessa  região  tinham
                          mente, chocantes.                       esta ocasião, foi levado para dentro de   acesso,  por  essas  vias,  às  fronteiras
                             Nas   socieda-   portas,  onde  foi  atacado  por  uma   do império Inca, onde obtinham, fos-
                          des   ameríndias    multidão  armada  de  tições  de  casca   se  por  trocas  fosse  por  incursões
                          mais hierarquiza-   de  árvore.  Enquanto  cambaleava  de   guerreiras, objectos e ouro e prata e,
        José G. B. Pereira  das, como os Tol-  um  lado  para  o  outro  da  sala,  algu-  sobretudo, machados e facas confec-
                (19510211)  tecas, Maias e As-  mas pessoas agarravam-lhe as mãos,   cionados em cobre e bronze. Este tipo
                          tecas,   também     quebrando-lhe os ossos, além de ou-  de contactos encontra-se arqueologi-
                          eram  sacrificados   tras violências que se seguiam.     camente atestado pela descoberta, no
         seres humanos mas, tal ritual, não foi   Sempre que parecia prestes a ex-  Rio Grande do Sul e na Cananeia (São
         uma invenção destas sociedades esta-  pirar, o chefe intervinha para que pa-  Paulo), de objectos de cobre andinos,
         tais.                                rassem de o atormentar, dizendo que   incluindo  machados,  anteriores  ao
            A ajuizar pelos indícios de socie-  era importante que visse a luz do dia.   início da penetração europeia. (Jorge
         dades agrupadas em bandos e aldeias   `A alvorada levaram-no para fora e   Couto,  A  Construção  do  Brasil,  1.ª
         por  todas  as  Américas  e  em  muitas   obrigaram-no a subir para uma pla-  edição, Lisboa, Cosmos, 1995, p. 89)
         outras  partes  do  mundo,  segundo   taforma  construída  numa  armação    Em suma, ao estudarmos estas so-
         Harris,  o  sacrifício  humano  antece-  de madeira para que toda a aldeia pu-  ciedades Tupi-Guarani, o que ressal-
         deu em muito a ascensão das religi-  desse  observar  o  que  lhe  estava  a   ta é a enorme fragmentação em que
         ões de estado. (Marvin Harris, Cani-  acontecer  –  servindo  a  armação  de   viviam, apesar da sua relativa homo-
         bais e Reis, Col. Perspectivas do Ho-  plataforma sacrificial, à falta das pi-  geneidade.
         mem,  Lisboa,  Edições  70,  1990,  p.   râmides  de  topo  plano  criadas  para   Como vimos, o estado de guerra a
         145)                                 tais fins pelos estados mesoamerica-  que  estas  sociedades  se  entregavam
            Do Brasil às Grandes Planícies, as   nos (Maias, Astecas). Quatro homens   frequentemente,  como  observa  Car-
         sociedades índias americanas sacrifi-  tomaram então a seu cargo a tortura   los  Fausto,  não  conduzia  à  subjuga-
         cavam  ritualmente  vítimas  para  ob-  do  cativo.  Queimaram-lhe  os  olhos,   ção, nem à escravização ou à extrac-
         ter certos tipos de benefícios. Pratica-  aplicaram-lhe  machados  em  brasa   ção  de  tributos,  mas  produzia  um
         mente  todos  os  elementos  do  ritual   nos ombros e enfiaram tições a arder   movimento  dirigido  literalmente
         asteca tiveram precursores nas cren-  na garganta e no ânus. Quando se tor-  para o consumo de inimigos – não de
         ças e práticas dos povos que viviam   nou evidente que ele estava a morrer,   sua força de trabalho, mas de suas ca-
         em bandos e aldeias. Até a preocupa-  um  dos  executores  «cortou  um  pé,   pacidades  subjectivas  –  sendo  que
         ção com a remoção cirúrgica do cora-  outro  uma  mão  e  quase  ao  mesmo   tudo  que  deles  restava  eram  bens
         ção tinha os seus precedentes. Os Iro-  tempo um terceiro separou a cabeça   imateriais: nomes, cantos e memória.
         queses, por exemplo, competiam uns   dos  ombros,  atirando-a  à  multidão   (Carlos  Fausto,  Os  índios  antes  do
         com os outros pelo privilégio de co-  onde alguém a apanhou» para a levar   Brasil,  3.ª  ed.,  Rio  de  Janeiro,  Jorge
         mer o coração de um prisioneiro bra-  ao chefe, que mais tarde fez «com ela   Zahar Editor, 2005, p.80)
         vo para adquirirem parte da sua co-  um festim». (Idem, op.cit., p. 148)    Por  outro  lado,  havendo  poucos
         ragem. (Idem, op.cit., p. 146)          Eram tais, as práticas, que ainda   prisioneiros,  o  seu  tratamento  tem-
            Eram tradições arreigadas em vá-  vigoravam em sociedades ameríndias   porário (quase como convidados) não
         rios povos. Mais de dezassete mil qui-  no século em que portugueses e espa-  é de surpreender. Sejam quais forem
         lómetros para norte do Rio de Janeiro,   nhóis as contactaram, sem que, delas,   as  ambivalências  psicológicas  pro-
         cerca de dois séculos depois, os mis-  se  tenham  apercebido  no  primeiro   fundas que possam existir nos espíri-
         sionários  jesuítas  testemunharam   encontro.                            tos dos captores, o prisioneiro é uma
         um  ritual  semelhante  entre  os  Hu-  Apesar  das  diferenças  em  aspec-  posse valiosa – uma posse por quem
         rons do Canadá. A vítima era um iro-  tos  de  concepção  e  execução  destes   os seus anfitriões arriscaram literal-
         quês que fora capturado juntamente   rituais,  depreende-se  que  havia  co-  mente a vida. Contudo, não havendo



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