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cróNicas




           erNANi BALSA
           19600300


           tempos de desesperança…






              iquei a olhar para a folha de papel branco, simulada no   verdade  nada  vos  posso  prometer  ou  agourar  de  bom,
           f meu computador e quedei-me de olhar vazio a pensar   porque  o  único  horizonte  que  se  nos  anuncia,  é  uma
           no que iria eu hoje escrever… ao fim de uns momentos,   noite escura e fria, uma alvorecer carregado de nuvens
           senti que também o meu pensamento estava branco, vazio,   escuras, um futuro sem horizonte ou um horizonte sem
           oco e ao mesmo tempo desfocado e obliterado por uma   futuro…
           enorme desesperança que dia a dia cresce em mim.      estou cansado de ouvir e ver noticiários, debates, ci-
              difícil, hoje em dia, é acreditar na esperança, quando   meiras, comentários ou simples entrevistas, a uma panóplia
           tudo se desmorona à nossa volta. o presente e o futuro   de pessoas que julga, ou quer fazer acreditar, que têm as
           fundem-se numa nuvem de incertezas, que vai ganhando   soluções  e  que  simultâneamente  nos  exigem  maiores  e
           forma  numa  indesmentível  certeza  de  que  em  cada  dia   mais  atrozes  sacrifícios,  tentando  convencer-nos  que  só
           que passa, amanhã vamos estar mais cientes de que tudo   assim alcançaremos o direito a continuarmos vivos e mes-
           aquilo que projectámos para o nosso futuro está a ser ci-  mo assim talvez ainda infelizes, sendo que nada, no entan-
           rurgicamente  destruído  por  forças  que  conhecemos,     to, está assegurado… apenas a promessa, que hoje em dia
           mas contra as quais, nos sentimos impotentes de combater.   se transformou num redondo vocábulo, que de tanto rolar,
           a  nossa  própria  vontade  já  não  é  vontade  própria,  por-   já perdeu o seu verdadeiro significado…
           que face a ela se opõem inúmeros novos factores, finan-  nestes dias de enevoada felicidade, choca-me o ruído
           ceiros e não só, que nos decapitam na nossa capacidade   pseudo-político das decalarações mais vãs e hipócritas de
           de resistência. são novas armas de “destruição maciça”, sem   que há memória, mas já nada disso é sequer política, na
           alma, sem princípios, sem valores e sem consciência, que   verdadeira acepção da palavr, porque a política submergiu
           têm  apenas  como  finalidade,  multiplicar  fortunas  e  vãs   à economia, e pior ainda, à voraz praga das finanças, dos
           ganâncias. o conceito de pessoa, de ser humano deixou de   negócios  e  de  todo  um  conjunto  de  sacrossantas  novas
           ter o significado comum da vida, para se converter exclu-  entidade,  de  onde  sobressai  essa  tenebrosa  e  indefenida
           sivamento  num  instrumento  para  se  atingirem  os  fins    figura dos “mercados”, que tudo parece regular e dirigir,
           mais lucrativos. a solidariedade, o social, na sua expressão   quando na verdade, deveriam ser eles a ser regulados pela
           mais humanista, foram reduzidos a alvos a abater. a vida   política, pelas instituições oficiais, no fundo, pela socieda-
           já  não  significa  bem  estar,  mas  apenas  transição  para  a   de… e a sociedade é o conjunto de pessoas, de cidadãos,
           morte…                                             organizados em estados…
              gostaria  imenso  de  poder  falar  de  outras  coisas  mais   este ruído que tem por fim entorpecer os cidadãos e
           agradáveis, coisas que todos nós reconhecemos como fa-  mantê-los em permanente ansiedade, uma ansiedade te-
           zendo parte dos nossos sonhos e nossos projectos de vida.   merosa  e  ameaçadora,  ignora  arrogantemente  os dramas
           gostaria de vos poder aqui trazer exemplos de bondade,   de cada um. amachuca os seus sonhos e anseios. despreza
           de exaltação da condição humana, falar-vos da amizade,   os seus gritos de socorro e indignação. é assim uma dita-
           do  companheirismo,  das  paixões  que  nos  alimentam  os   dura das próprias consciências, uma opressão dos direitos
           sonhos, da beleza e urgência da arte, da importância da   mais básicos da pessoa humana, uma permanente censura
           música, da magia da fotografia, do deleite de se ler um   à inteligência…
           bom livro, enfim, de tudo o que uma pessoa neste mundo   nestes dias tristes, sem futuro e sem direito ao sonho,
           pode almejar como momentos de verdadeiro bem estar e   muitas  coisas  vão  acontecendo  e  os  arautos  da  desgraça
           celebração da vida…                                institucionalizada  que  aí  vem,  arredam-se  de  todos  os
              gostaria de poder transmitir-vos uma luz de esperança,   alertas de perigo para a sociedade em geral e arredam de
           no sentido de que os nossos esforços podem ser recom-  si  a  inconveniência  de  se  terem  de  confrontar  com  os
           pensados,  de  que  a  nossa  boa  conduta  nos  asseguraria    pequenos desastres de cada um, coisa que eles consideram
           um lugar ao sol, de que o trabalho ainda é ainda o acto   inevitável para a marcha triunfal em direcção à derrocada
           digno  de  contribuirmos  para  o  bem  de  todos.  nada     inevitável de todos os princípios e valores… valores, ape-
           disto, porém, é hoje em dia tangível ou previsível… na   nas aqueles que são cotados em bolsa e dão lucro, porque


                                                                                         Boletim da associação dos PuPilos do exército  29
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