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evocações
Trajava este senhor professor normalmente com gabar- E, desprezando o intervalo entretanto suscitado pelo
dine da cor do chapéu (ou seria este da cor da dita?!) mais corneteiro, retirava então de uma das algibeiras das calças
“cascol” e chapéu-de-chuva quando inverno! um amplo lenço de assoar, tipo tabaqueiro, como por
Era nosso professor de Noções Gerais de Comércio, aqueles idos tempos lhes chamavam, desembaraçava-se dos
Geografia e Matemática; disciplinas estas que num dos dias óculos e assoava-se estrondosamente! A partir dali estaria
da semana eram seguidas. Coisa que, aliás, só em teoria justificada a aparição dos frasquinhos.
acontecia, conforme verificareis pelo relato que vos vou Em seguida deleitava-se a inspirar os eflúvios de cada
fazer, apesar de, entretanto, se terem passado mais de um, quase os introduzindo nas narinas, autênticas cavernas
sessenta anos… Creio que este triunvirato de aulas com o existentes na base daquele tamanho promontório, respira-
“Cavalão” tinha lugar nas manhãs das terças-feiras, nos três douro que o servia! Dizendo logo a seguir à recolha dos
primeiros tempos: das oito às oito e cinquenta, das nove frasquinhos: bem… Vou chamar! Imediatamente e em
às nove e cinquenta e das dez às dez e cinquenta. simultâneo, todos os alunos fixavam a sua atenção no
Depois de comparecermos à formatura para o primeiro tampo das carteiras, onde previamente já haviam disposto,
tempo de aulas marchávamos para a nossa, que ficava situa- aberto, o livro de Matemática do autor Manuel de Almei-
da no primeiro andar do primeiro grande pavilhão, logo em da, como se estivessem atentamente embrenhados no seu
frente à então portaria existente, onde se encontrava também estudo, sendo-lhes dado então ouvirem o “Entrudo” pro-
o gabinete destinado aos senhores oficiais de dia. clamar, pausadamente, a sua já conhecida angustiante
Quando lá chegávamos o professor ainda não tinha expressão cadenciada: – Venha à lição… (breve pausa)
comparecido, como habitualmente, sendo que qualquer Aquele aluno!... (silêncio absoluto) Seguido da insistência:
excepção existente só serviria para confirmar a regra dos sim você, você mesmo que está aí armado em parvo!...
seus crónicos atrasos! Então, para aí uns cinco minutos Nada! Nem uma mosca se conseguiria ouvir naquele si-
antes da hora de aula terminar aparecia ele já há muito lêncio angustiante… O “Palmitatos” então vociferava de
detectado pelo nosso vigia de serviço, que ia esquadrinhar tal maneira que havia sempre um ou outro miúdo que se
a alameda até o ver passar a linha do comboio, algumas ia abaixo e levantava a cabeça julgando-se o alvo do pro-
vezes em companhia da encarregada da rouparia, uma fessor. E ainda que o não fosse já estava perdido porque
senhora gordinha e afável que lhe fazia os encantos “hon- logo o “Cavalão” o apontava afirmando-lhe, peremptório:
ni soit qui mal y pense”! É você mesmo, venha cá ao quadro! E todas as cabeças
Lá vem ele! Avisava o nosso espavorido vigia, indo se levantavam, aliviadas, para fitar o infeliz!
rapidamente sentar-se na sua habitual carteira. Então, Então, diga-me cá, o que é máximo divisor comum?
pouco depois, o chefe de curso mandava levantar quando O atarantado garoto deitava olhares angustiados aos ca-
o “Cavalão” entrava dizendo logo uma das suas frases jus- maradas para ver se conseguia alguma ajuda bichanada,
tificativas dos atrasos: atravessou-se uma carroça em fren- mas não, ou ninguém sabia, ou ninguém arriscava! E o
te do carro eléctrico e nunca mais saíamos dali! Logo se- “Cavalão”, que por vezes ainda nem sequer tinha dado a
guida da pergunta: chefe da turma…Falta alguém? E depois, matéria em causa, punha-se a verificar o estado da sua
chegado à beira da secretária passava-lhe o dedo indicador “cavalar” dentadura, mirando-se num pequeno espelho
disponível pelo tampo e dizia, indignado: mas isto está que tirara, entretanto, de outra das suas amplas algibeiras.
cheio de pó! Ordenando, logo em seguida, agastado: che- E o tempo passava, passava e ele ia remexendo nos bol-
fe da turma, mande já à rouparia alguém buscar um pano sos, puxando da caneta com que ia batendo no tampo da
para que eu me possa sentar. secretária, até que olhado para o relógio dizia: Então
E lá ia, mostrando-se muito diligente, o Pilãozinho um aluno do 2ºano não sabe uma coisa destas?! Pode
que se encontrasse mais perto da porta. Saía a correr mas sentar-se. E depois de perguntar o número ao aluno, que
logo que desenfiado das vista do “Cavalão” metia a passo, devido às confusões que o professor fazia alterando-o
para só voltar a entrar na aula com o tão desejado “pano várias vezes por incorrecta audição, lá acabava por anotá-
de pó”quando se estivessem prestes a ouvir os sons do lo no boletim com a descrição de nota inferior a medíocre,
toque a alto àquele tempo de aulas. Entretanto o “Cavalão” e por isso a saída de fim-de-semana era-lhe assim anulada!
tinha passado o tempo de espera voltado para a janela E nunca chegava a dizer que máximo divisor comum é o
remexendo nos bolsos da gabardine sob o olhar atento da produto dos factores primos comuns e não comuns com o
silenciosa rapaziada, expectante sobre o que iria sair dali! menor expoente!
Depois de convenientemente limpa a secretária, o É assim, não há regra sem excepção mas, felizmente, a
“Cavalão” sentava-se dispunha a pequena pasta que trazia regra no Instituto dos Pupilos do Exército era termos
consigo, sobre o tampo desta, abria-a e ia retirando caute- excelentes professores, que nos prepararam para enfrentar
losamente dela, um a um, uma série de cinco ou seis pe- com dignidade e eficiência as vicissitudes da vida e sermos
quenos frascos multicolores, dispondo-os meticulosamen- úteis à nossa Pátria. Estejam eles onde estiverem bem
te à sua frente. hajam pelo bem que nos fizeram.
8 Boletim da associação dos PuPilos do exército