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evocações
FerNANDo criSTo
19550373
Por isso eu acho que sou de
uma geração que teve que se
Tempo de memória desenrascar e isso ainda hoje tem
efeitos, em face de problemas que
se resolvem com «cabeça e mão-
zinhas».
enho que vos dizer, que esta «escrita» como principio, Somos a geração «desenrasca».
Té uma questão de «calças.» Os alunos mais velhos, alguns,
Sou de uma geração, que passou tempos difíceis, que os que tinham «alvará», também
não foi muito habituada a mimos ou facilidades, dado que se desenrascavam com os seus
os pais e todos os familiares mais velhos, tinham uma vida negócios, ganhavam uns «trocados» 19540233 - Constantino
activa bastante dura. Anos e anos de luta e trabalho, para para o fim-de-semana. Vendiam entre os mais velhos os
na maioria dos casos, poderem dar aos seus filhos o melhor famosos «éles», uns cigarritos Português Suave ou SG filtro,
que lhes fosse possível. um/três, dois/cinco ou seja, três ou cinco tostões conforme
Os pais da minha geração foram aqueles que sofreram um ou dois cigarritos. Se não havia «massa», não faz mal,
as dificuldades impostas por uma guerra que devastava a vai para a lista de devedores… grandes calotes! Mas não
Europa. Senha de racionamento para alimentos, tremenda eram só «éles», o negócio das sandes, coisa que nunca
dificuldade em obter produtos base, horas e horas em filas percebi…quem não quisesse também comprava, que re-
para obterem um pouco de azeite, leite, etc. médio …
Assim me contaram os meus pais. Transportadas em malas para livros de estudo, sandes
As roupas os livros da escola, passavam de irmãos para de fiambre ou queijo que transbordavam daquele «papo-
irmãos, tudo se aproveitava, deve ter sido difícil. -seco» que, quando se abria, só tinha miolo. Não eram
Este conceito de dificuldade manteve-se por largos anos aceites reclamações… nem pensar era malta do último ano,
e quando já nas escolas, os professores, para além da mis- finalistas. Assim arranjavam uns trocos para os bailes ao
são de ensino, são os doutrinantes de um conjunto de fim de semana no Grandela ou no Fó-Fó de Benfica ou na
princípios que, não cabe aqui discutir. «Mula» (Cooperativa Militar), etc…
Assim, eu fui «um privilegiado», fui para um colégio Mas tudo isto foi acalmando e muito se modificou a
interno com regras muito específicas, regime militarizado, partir de 1958. Foram feitas grandes reformas no Instituto,
o Instituto Profissional dos Pupilos do Exército. O enxoval, entre elas, o fardamento.
mensalidade e alguns extras foram por certo uma despesa Assim, permitam-me recordar o Director do Instituto
considerável. (1958-1971), Coronel Alfredo Ferreira Gonçalves, pessoa
Assim sendo, roupas, fardas, botas, etc., tinham que que «arrumou a casa» e fez-nos entender que os direitos
render. e deveres dos alunos devem ser respeitados pelos próprios
Chego pois à questão das calças. O pessoal ia crescen- alunos. Recordo o dia em que se deixou de usar fechadu-
do, não era possível fazer-se «birra» com os pais para ter ras ou cadeados de segurança nos armários e secretárias
desde já outras calças. das salas de estudo e alojamentos. Foi também, proibido
O dinheiro não abundava nem havia loucura das «mar- escrever «é proibido» (isto muito antes de Maio de 1968).
cas». Aprendi a lição!
Como resolver…? Sim- O fardamento interno passou a ter uma norma mais
ples, como sempre, com a de acordo com as características do Instituto, um modelo
ajuda das senhoras da rou- de blusão interessante, camisa e gravata enfim, os alunos
paria, lá arranjavam uns deixaram de ter aquele aspecto de…«asilosos».
acrescentes, de uns para Mas a questão das calças, continuou a necessitar da
os outros, remendavam e delicada mão-de-obra das senhoras da rouparia. Ninguém
emendavam calças, samar- era rico, mesmo de gravata, camisa e blusão, o pessoal
ras, mangas, eram a nossa desenrascava-se.
salvação. Assim os «éles» continuaram a ser um negócio catita
Quer se queira ou não, tinham no entanto regras mais defenidas. Alunos, aqueles
foi assim. Havia brinquedos, que já faziam a barba, local «rectas» (WC) na 3ª companhia.
mas só no Natal e poucos, Com os anos, fumasse ou não, após o jantar era esse o
normalmente jogos da Ma- local onde os alunos mais velhos começavam a falar entre
jora, os restantes dependiam si, a ouvir em pequenos rádios «transistorizados», coisas
19550373 - Cristo da imaginação de cada um. que estavam a acontecer lá fora, mas também cá dentro…
4 Boletim da associação dos PuPilos do exército