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evocações



            QUeiróS De AzeVeDo
            1944.286
                                                               antes  de  quatro  anos  de  internato,  dizer:  –  eu  não  vou!
                                                               Aquele gajo é maluco e ainda nos dá um arraial de porra-
            A Fé tem coisas destas!...                         da!...
                                                                  A intervenção do “Cantinflas” criou uma certa hesitação
                                                               nos destacados, mas continuámos, apesar de termos ficado
                                                               desfalcados por mais uma discreta desistência!
                                                                  Em  silêncio,  mas  com  passo  resoluto,  lá  nos  fomos
               Naquele fim-de-semana do ano de 1947, encontrava-me   aproximando do Aldino Vitorino e, ao alcançá-lo, ele não
            eu encostado ao muro que faz de parapeito fim da parada   abrandou  a  passada,  nem  nos  ligou  nenhuma,  mas  nós
            superior da 1ª Secção do IPE., conversando amenamente   acompanhámo-lo  e  fomos  constatando  o  seu  estranho
            com uns quantos colegas, de costas voltadas para o grande   procedimento, bem como se tinha ataviado para a também
            espaço situado mais abaixo, a seguir ao ringue de patinagem   estranha actividade em que estava empenhado.
            e  ao  caminho  existente  antes  do  campo  de  jogos;  vasto   Como já sabemos o rapaz encontrava-se de trono nu.
            espaço este então constituído pela horta, campos de bas-  Tinha tirado o casaco de cotim e a camisola interior. Vimo-
            quete e de vólei, caixa de saltos e campo de futebol que   los ambos caídos mais o “quico” de serviço, um pouco mais
            se estendia até ao muro da exploração agro-pecuária, casa   à frente, junto ao muro limite que dava para a ribeira: E
            do funcionário e cavalariças, quando um desses colegas nos   como que a substitui-los tinha apoiada no ombro direito,
            chamou  a  atenção  para  o  que,  de  insólito,  se  estaria  a   a extremidade de uma desconjuntada trave lateral de ba-
            passar no fundo do campo.                          liza de futebol, bem segura ao ombro por um pedaço de
               Lá longe quase rente ao muro que delimitava os terre-  desfiada  corda  de  ginásio,  no  entanto  ainda  apta  para
            nos do nosso Instituto, defendendo-o da ribeira esgoto que,
            mais em baixo, se escoava rumo a desconhecidas paragens,   aquele efeito, desde que as mãos do rapaz impedissem que
            interpondo-se  entre  o  nosso  muro  e  a  linha  férrea  de   esta lhe fosse escorregando do ombro, com o arrastar pelo
            comboio que circulava por uma muito mais elevada cota,   terreno incerto, pejado de escalracho.
            algo de estranho se passava!                          Sendo eu que acompanhava mais de perto o percurso
               – Eh! Pá, quem será aquele gajo que está lá ao fundo   do Aldino Vitorino, por melhor o conhecer, dado que já
            do campo a percorre-lo, de um lado para o outro, com um   várias  vezes  tinha  falado  com  ele  quando  em  grupo  o
            grande  barrote  às  costas  e  em  tronco  nu?!  –  Perguntou   encontrava, perguntei-lhe amenamente: Ó Aldino, o que
            alto, para que todos nós o ouvíssemos, um dos rapazes com   é que andas a treinar?
            quem  estávamos  a  conversar,  acrescentado:  –  desde  que   O interpelado parou e olhou para mim atónito, como
            aqui estamos já o vi percorrer o trajecto, de um lado para   se eu o tivesse acordado de um sono ferrado! E perguntou-
            o outro, algumas três vezes!                       me,  espantado:  –  então  tu,  que  és  um  puto  inteligente,
               Como eu era o único que me encontrava de costas para   perguntas-me uma coisa dessas?! Estás parvo ou quê?!
            o  local  indicado,  voltei-me  imediatamente.  E,  depois  de   Como  já  estava  a  ver  o  caso  mal  parado  comecei  a
            uns momentos de silêncio, perscrutando a actividade de-  levar muito a sério o comentário do “Cantinflas” e respon-
            nunciada do colega ainda não identificado, dispondo eu,   di lisonjeiro: – Olha que um treino assim tão puxado até
            como dispus até aos meus quarenta anos, de uma activi-  a ti, que és tão forte, te pode fazer mal!...
            dade visual muito boa, de que até eu próprio por vezes   Fazer  mal!  Fazer  mal!  –  Comentou  ele  mudando  o
            me admirava, disse: – aquele é o Aldino Vitorino “escravo   rosto  para  uma  expressão  beatífica.  –  Sim,  fazer  mal!  –
            maldito”, como ele a si próprio se intitulava, mas o que   Repeti eu o mais conciliadoramente que me foi possível,
            ele anda a fazer com aquele barrote às costas … Não sei!  acrescentando: – deves estar a ter um grande sofrimento…
               Eh! Murmuraram vários dos presentes, depois de alguns   O Aldino Vitorino parou, olhou para o infinito, ajeitou
            momentos de curiosa fixação no insólito comportamento   melhor o barrote e, imanando certezas da expressão bea-
            do  colega  mais  velho,  com  maior  envergadura  do  que  a   tífica que assumiu, disse pausadamente, com voz cava e
            nossa e que teria, talvez, mais de quinze anos.    profunda, reiniciando a calvárica marcha: – vão-se embo-
               Depois de um pouco de expectativa, tomei a iniciativa   ra e deixem-me sofrer que Deus também sofreu!...
            de propor que fossemos até lá, mas dos oito ou nove ra-  Creio que nunca mais me dirigi ao Aldino Vitorino. E
            pazes que ali estávamos só quatro se movimentaram para   creio também que ele deixou rapidamente o “Pilão” porque
            me acompanhar.                                     não tenho mais quaisquer lembranças de ter tido outros
               Ao  nos  afastarmos  do  grupo  ainda  pudemos  ouvir  o   contactos  com  ele.  Mas  até  hoje,  passados  que  estão  64
            “Cantinflas”, um rapazinho nervoso que acabou por sair   anos nunca pude esquecer tão insólita ocorrência!



       12  Boletim da associação dos PuPilos do exército
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