Page 18 - Boletim APE_221
P. 18
evocações
JoSé NUNeS DA crUz
1955.0170
Uma correcção de ponto muito especial
O ano lectivo de 1955/56, o do meu 2º ano do Curso dele o qual muito contribuiu para ter continuado a sentir
Geral Preparatório, aproximava-se calmamente do fim. Para naquela altura a matemática como a “ciência dos pregui-
alguns, o cheiro a férias (grandes, ditas na altura) intensi- çosos”, já que para assimilar a matéria quase bastava estar
ficava-se com a calma e segurança da passagem de ano com atenção nas aulas e ir seguindo o que o mestre dizia.
assegurada. Para outros, a incerteza do atingir daquela Os pontos que este professor fazia, eram depois corri-
malfadada e “alta” fasquia dos 29 em todas as disciplinas, gidos na aula em que dava as notas, solicitando a um ou
deixava-os nervosos. outro aluno contribuições para essa resolução, principal-
Para esses, que fazer? A intensificação do estudo já mente se suspeitava que o aluno tinha utilizado métodos
podia não chegar, deveria ter começado mais cedo, mas só menos lícitos na sua feitura.
agora tinham consciência disso. Os pontos do tudo ou nada Um dos alunos da turma que estava muito problemá-
com que alguns professores ofereciam uma última opor- tico quanto à passagem de ano era o 369, de sua alcunha
tunidade aos aflitos, eram autênticos totobola, se eles o “Nabo”.
contassem apenas com a sua ciência. Estariam esgotadas O professor tinha marcado um dos tais pontos de
todas as hipóteses de êxito? Claro que não. “salvação”, curiosamente numa sala de estudo da 1ª Secção,
Que tal uma ajudinha externa, à margem das regras, já lembro-me perfeitamente.
se vê, mas com resultados previsivelmente garantidos? E Em desespero de causa e tendo consciência da sua
que seria isso visto à luz de uma camaradagem e amizade improvável “salvação” apenas com os recursos próprios, o
que nos eram incutidas e cultivadas desde tenra idade? “Nabo” lançou-me um pedido lancinante antes de entrar-
Não seria mais do que a ultrapassagem daquelas regras mos na sala:
formais, muito fora de nós e desvalorizadas por outras mais – Passa-me o ponto! – ao que eu não hesitei um se-
importantes, estas sim, integrantes de um código de hon- gundo a anuir.
ra não escrito mas assumido por cada um de nós. Lá fizemos por nos sentarmos ao pé um do outro e as
O cabulanço, o copianço, a passagem de pontos, era soluções chegaram sem qualquer problema ao aflito do
visto, não como um atropelo à consciência de cada um, meu amigo, que certamente aliviado da sua preocupação
mas como mera luta ancestral e para todo o sempre entre nem mais pensou no assunto.
o aluno que tentava aqueles expedientes e o professor que Na aula da correcção e distribuição das notas, o “Caga
os procurava impedir. É claro que o aluno tinha consciên- cão”, calmamente lá foi dizendo:
cia do risco e assumia-o com naturalidade. Eram as regras. – Há dois dezoitos, para os alunos 170 (eu) e 369;
Já naquela altura a matemática constituía um problema tanto para este, tanto para aquele e por aí abaixo para os
importante para alguns, fosse por fraca preparação de base restantes.
fosse por aversão de nascença a esse, para eles, tenebroso Bom, a calma do discurso do mestre começou a ener-
mundo dos números. var a assistência, principalmente a mim e ao 369. De se-
Um dos três intervenientes da historieta que se segue, guida, sem alterar a voz estranhamente pacífica, virou-se
era precisamente o professor daquela disciplina, o “Caga para o outro detentor do dezoito e disse-lhe:
Cão”. – Anda cá ao quadro menino. – E agarrando no ponto,
Porquê esta alcunha? Porque quando interpelava um começou:
aluno com alguma questão e este se atrapalhava e emba- – 1ª pergunta – e lendo o enunciado, convidou-o a
tucava, ele desfiava a ladainha: resolver a questão.
- Caga cão, caga cão, já cagaste? Ainda não! O embasbacado “Nabo” nem abriu a boca.
Claro que o incentivo para o infeliz na berlinda era, – 2ª pergunta – idem, idem.
para além de nulo, negativo. E a ladainha continuava, como E assim sucessivamente até à última.
disco riscado, até o visado se sair com qualquer coisa ou, Então, sem alterar a calma, agarrou no ponteiro e deu
o mais frequente, a cena encerrar-se com um arraial de um valente arraial de ponteirada no “Nabo”.
ponteirada. Eu cada vez me encolhia mais e se pudesse tinha-me
Infelizmente não me lembra já do nome deste profes- ausentado num golpe de mágica para o mais longe possí-
sor, de quem guardo as melhores recordações como do-
cente. Encaixei completamente com o método de ensino (continua na página seguinte)
16 Boletim da associação dos PuPilos do exército