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evocações



            JoSé NUNeS DA crUz
            1955.0170

            Uma correcção de ponto muito especial





               O ano lectivo de 1955/56, o do meu 2º ano do Curso   dele o qual muito contribuiu para ter continuado a sentir
            Geral Preparatório, aproximava-se calmamente do fim. Para   naquela altura a matemática como a “ciência dos pregui-
            alguns, o cheiro a férias (grandes, ditas na altura) intensi-  çosos”, já que para assimilar a matéria quase bastava estar
            ficava-se  com  a  calma  e  segurança  da  passagem  de  ano   com atenção nas aulas e ir seguindo o que o mestre dizia.
            assegurada.  Para  outros,  a  incerteza  do  atingir  daquela   Os pontos que este professor fazia, eram depois corri-
            malfadada e “alta” fasquia dos 29 em todas as disciplinas,   gidos na aula em que dava as notas, solicitando a um ou
            deixava-os nervosos.                               outro aluno contribuições para essa resolução, principal-
               Para  esses,  que  fazer?  A  intensificação  do  estudo  já   mente se suspeitava que o aluno tinha utilizado métodos
            podia não chegar, deveria ter começado mais cedo, mas só   menos lícitos na sua feitura.
            agora tinham consciência disso. Os pontos do tudo ou nada   Um dos alunos da turma que estava muito problemá-
            com que alguns professores ofereciam uma última opor-  tico quanto à passagem de ano era o 369, de sua alcunha
            tunidade  aos  aflitos,  eram  autênticos  totobola,  se  eles   o “Nabo”.
            contassem apenas com a sua ciência. Estariam esgotadas   O  professor  tinha  marcado  um  dos  tais  pontos  de
            todas as hipóteses de êxito? Claro que não.        “salvação”, curiosamente numa sala de estudo da 1ª Secção,
               Que tal uma ajudinha externa, à margem das regras, já   lembro-me perfeitamente.
            se vê, mas com resultados previsivelmente garantidos? E   Em  desespero  de  causa  e  tendo  consciência  da  sua
            que seria isso visto à luz de uma camaradagem e amizade   improvável “salvação” apenas com os recursos próprios, o
            que  nos  eram  incutidas  e  cultivadas  desde  tenra  idade?   “Nabo” lançou-me um pedido lancinante antes de entrar-
            Não  seria  mais  do  que  a  ultrapassagem  daquelas  regras   mos na sala:
            formais, muito fora de nós e desvalorizadas por outras mais   – Passa-me o ponto! – ao que eu não hesitei um se-
            importantes, estas sim, integrantes de um código de hon-  gundo a anuir.
            ra não escrito mas assumido por cada um de nós.       Lá fizemos por nos sentarmos ao pé um do outro e as
               O  cabulanço,  o  copianço,  a  passagem  de  pontos,  era   soluções  chegaram  sem  qualquer  problema  ao  aflito  do
            visto, não como um atropelo à consciência de cada um,   meu amigo, que certamente aliviado da sua preocupação
            mas como mera luta ancestral e para todo o sempre entre   nem mais pensou no assunto.
            o aluno que tentava aqueles expedientes e o professor que   Na aula da correcção e distribuição das notas, o “Caga
            os procurava impedir. É claro que o aluno tinha consciên-  cão”, calmamente lá foi dizendo:
            cia do risco e assumia-o com naturalidade. Eram as regras.  –  Há  dois  dezoitos,  para  os  alunos  170  (eu)  e  369;
               Já naquela altura a matemática constituía um problema   tanto para este, tanto para aquele e por aí abaixo para os
            importante para alguns, fosse por fraca preparação de base   restantes.
            fosse por aversão de nascença a esse, para eles, tenebroso   Bom, a calma do discurso do mestre começou a ener-
            mundo dos números.                                 var a assistência, principalmente a mim e ao 369. De se-
               Um dos três intervenientes da historieta que se segue,   guida, sem alterar a voz estranhamente pacífica, virou-se
            era precisamente o professor daquela disciplina, o “Caga   para o outro detentor do dezoito e disse-lhe:
            Cão”.                                                 – Anda cá ao quadro menino. – E agarrando no ponto,
               Porquê esta alcunha? Porque quando interpelava um   começou:
            aluno com alguma questão e este se atrapalhava e emba-  –  1ª  pergunta  –  e  lendo  o  enunciado,  convidou-o  a
            tucava, ele desfiava a ladainha:                   resolver a questão.
               - Caga cão, caga cão, já cagaste? Ainda não!       O embasbacado “Nabo” nem abriu a boca.
               Claro que o incentivo para o infeliz na berlinda era,   – 2ª pergunta – idem, idem.
            para além de nulo, negativo. E a ladainha continuava, como   E assim sucessivamente até à última.
            disco riscado, até o visado se sair com qualquer coisa ou,   Então, sem alterar a calma, agarrou no ponteiro e deu
            o  mais  frequente,  a  cena  encerrar-se  com  um  arraial  de   um valente arraial de ponteirada no “Nabo”.
            ponteirada.                                           Eu cada vez me encolhia mais e se pudesse tinha-me
               Infelizmente não me lembra já do nome deste profes-  ausentado num golpe de mágica para o mais longe possí-
            sor, de quem guardo as melhores recordações como do-
            cente. Encaixei completamente com o método de ensino                        (continua na página seguinte) 



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