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evocações



          HUmBerTo LoLA DoS reiS
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          A “Doença do mar”






            A história que vos contar, também verídica, passa-se   gostava muito de se perfumar e aplicar cremes no corpo,
          ainda  a  bordo  do  “Afonso  de  Albuquerque”  na  minha   levando algum tempo nessas operações. Durante o almoço,
          viagem de guardas-marinha.                         este colega estava a tomar duche, pelo que não se encon-
            Quando se inicia uma viagem o normal é a maioria do   trava ainda sentado à mesa.
          pessoal  sentir  a  “doença  do  mar”,  mais  conhecida  por   Como jovens que éramos, estávamos sempre em busca
          “enjoo”. Depois, com o passar dos dias, grande parte deixa   daquele que pudesse ser a vítima da próxima brincadeira.
          de sentir essa maleita, embora haja alguns que nunca se   Foi então que alguém olhou para o chefe do curso e lhe
          adaptam.  No  entanto,  se  aparecer  mar  forte  e  o  navio   disse: É pá, estás a ficar enjoado! Foi o despoletar do “jogo
          balançar mais do que o habitual, há sempre mais alguns   malandro”. Todos começaram a olhar para o infeliz, que
          que voltam a enjoar.                               afirmava  não  estar  a  sentir  qualquer  incómodo.  Mas  a
            Embora se possa dizer que a “anormalidade” se encon-  verdade é que já estava um pouco branco e como o enjoo
          tra naqueles que nunca enjoam, mesmo nas piores condi-  também tem uma componente psicológica a cada momen-
          ções  de  mar  e  que,  portanto,  o  normal  é  enjoar-se,  há   to ele ia ficando pior. E a rapaziada não parava: olha lá,
          sempre alguns que parece sentirem-se inferiorizados e, por   porque é que te estás a armar em forte? Não tarda muito
          isso, procuram esconder e negar que se estão a sentir mal,   vais a correr para a borda deitar “carga ao mar”. Era uma
          ainda que seja difícil convencerem quem os está a ver.  expressão  que  se  usava  quando  se  vomitava.  Ele  conti-
            Uma das coisas que mais incomoda quem está enjoado   nuava a comer a sua canja, fazendo um esforço para não
          é o fumo do cigarro. Quem fuma…deixa logo de o fazer!   ceder. Mas a determinada altura, já não aguentando mais,
          No grupo dos guarda-marinha havia um que nunca enjoa-   levantou-se a correr para sair da câmara.
          va, nunca! E como era muito gozão, quando via a maior   E o que aconteceu? Só isto: o tal guarda-marinha que
          parte da rapaziada enjoada, sentava-se num banco, encos-  estava a tomar duche, apareceu à porta da câmara, com o
          tado à antepara da nossa camarinha, puxava dum charuto,   seu  robe  branco,  com  os  bolsos  cheios  de  cosméticos  e
          que era ainda mais agressivo e punha-se a fumar, lançando   muito bem perfumado. O chefe de curso deu com ele de
          grandes  baforadas  para  o  ar.  Claro  que  nós  reagíamos,   frente e como não podia passar e já não aguentava mais,
          atirando-lhe botas, sapatos e outros objectos até ele parar.  levou  as  mãos  à  boca,  que  apertou,  mas  acabando  por
            Um  dia,  com  o  mar  um  pouco  agitado,  estávamos  a   lançar um grande vómito, que deu origem a que o arroz
          almoçar canja de galinha, com arroz, que se suporta melhor   passasse através dos dedos para cima do colega todo per-
          quando se está nauseado.                           fumado  recebendo  um  “duche”  de  arroz!  Esse  guarda-
            São  intervenientes  principais  neste  episódio,  o  nosso   marinha, sempre foi um homem muito educado, calmo e
          chefe  de  curso,  um  dos  tais  que  procurava  esconder  o   que nunca disse um palavrão.
          enjoo e um outro guarda-marinha que procurava sempre   Mas  dessa  vez  disse:  MERDA!  Sem  se  dirigir  ao  seu
          horas  diferentes  para  tomar  o  seu  duche  diário,  porque   “agressor”, deu meia volta e foi tomar novo duche!



           (continuação da página anterior)                   No fim, limitou-se a dizer:
                                                               – Agora vão ter um zero cada um!
          vel dali. Não sabia o que iria acontecer mas boa coisa não   Aí caiu-me o céu em cima! Claro que dava para passar,
          seria certamente.                                  mas estragava-me a nota do 3º período que eu tanto pre-
            E não me enganei. Quando acabou o ajuste de contas   zava. E o “Nabo”, coitado, comprometia definitivamente a
          com  o  meu  condiscípulo,  continuando  sem  se  alterar,   sua passagem de ano.
          simplesmente me disse:                               Já não me lembro se os zeros foram para valer ou não
            – Agora anda cá tu.                              nem se o 369 passou de ano. Mas foi a primeira vez que,
            Imediatamente eu deixei de ver fosse o que fosse, que   sem ainda saber o nome, vi na prática em que consistia o
          não fosse o ponteiro a atingir-me por todos os lados e mais   controlo pelos resultados. Como pedagogia, foi uma exce-
          algum.                                             lente lição.


                                                                                        Boletim da associação dos PuPilos do exército  17
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