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evocações
HUmBerTo LoLA DoS reiS
1941.0159
A “Doença do mar”
A história que vos contar, também verídica, passa-se gostava muito de se perfumar e aplicar cremes no corpo,
ainda a bordo do “Afonso de Albuquerque” na minha levando algum tempo nessas operações. Durante o almoço,
viagem de guardas-marinha. este colega estava a tomar duche, pelo que não se encon-
Quando se inicia uma viagem o normal é a maioria do trava ainda sentado à mesa.
pessoal sentir a “doença do mar”, mais conhecida por Como jovens que éramos, estávamos sempre em busca
“enjoo”. Depois, com o passar dos dias, grande parte deixa daquele que pudesse ser a vítima da próxima brincadeira.
de sentir essa maleita, embora haja alguns que nunca se Foi então que alguém olhou para o chefe do curso e lhe
adaptam. No entanto, se aparecer mar forte e o navio disse: É pá, estás a ficar enjoado! Foi o despoletar do “jogo
balançar mais do que o habitual, há sempre mais alguns malandro”. Todos começaram a olhar para o infeliz, que
que voltam a enjoar. afirmava não estar a sentir qualquer incómodo. Mas a
Embora se possa dizer que a “anormalidade” se encon- verdade é que já estava um pouco branco e como o enjoo
tra naqueles que nunca enjoam, mesmo nas piores condi- também tem uma componente psicológica a cada momen-
ções de mar e que, portanto, o normal é enjoar-se, há to ele ia ficando pior. E a rapaziada não parava: olha lá,
sempre alguns que parece sentirem-se inferiorizados e, por porque é que te estás a armar em forte? Não tarda muito
isso, procuram esconder e negar que se estão a sentir mal, vais a correr para a borda deitar “carga ao mar”. Era uma
ainda que seja difícil convencerem quem os está a ver. expressão que se usava quando se vomitava. Ele conti-
Uma das coisas que mais incomoda quem está enjoado nuava a comer a sua canja, fazendo um esforço para não
é o fumo do cigarro. Quem fuma…deixa logo de o fazer! ceder. Mas a determinada altura, já não aguentando mais,
No grupo dos guarda-marinha havia um que nunca enjoa- levantou-se a correr para sair da câmara.
va, nunca! E como era muito gozão, quando via a maior E o que aconteceu? Só isto: o tal guarda-marinha que
parte da rapaziada enjoada, sentava-se num banco, encos- estava a tomar duche, apareceu à porta da câmara, com o
tado à antepara da nossa camarinha, puxava dum charuto, seu robe branco, com os bolsos cheios de cosméticos e
que era ainda mais agressivo e punha-se a fumar, lançando muito bem perfumado. O chefe de curso deu com ele de
grandes baforadas para o ar. Claro que nós reagíamos, frente e como não podia passar e já não aguentava mais,
atirando-lhe botas, sapatos e outros objectos até ele parar. levou as mãos à boca, que apertou, mas acabando por
Um dia, com o mar um pouco agitado, estávamos a lançar um grande vómito, que deu origem a que o arroz
almoçar canja de galinha, com arroz, que se suporta melhor passasse através dos dedos para cima do colega todo per-
quando se está nauseado. fumado recebendo um “duche” de arroz! Esse guarda-
São intervenientes principais neste episódio, o nosso marinha, sempre foi um homem muito educado, calmo e
chefe de curso, um dos tais que procurava esconder o que nunca disse um palavrão.
enjoo e um outro guarda-marinha que procurava sempre Mas dessa vez disse: MERDA! Sem se dirigir ao seu
horas diferentes para tomar o seu duche diário, porque “agressor”, deu meia volta e foi tomar novo duche!
(continuação da página anterior) No fim, limitou-se a dizer:
– Agora vão ter um zero cada um!
vel dali. Não sabia o que iria acontecer mas boa coisa não Aí caiu-me o céu em cima! Claro que dava para passar,
seria certamente. mas estragava-me a nota do 3º período que eu tanto pre-
E não me enganei. Quando acabou o ajuste de contas zava. E o “Nabo”, coitado, comprometia definitivamente a
com o meu condiscípulo, continuando sem se alterar, sua passagem de ano.
simplesmente me disse: Já não me lembro se os zeros foram para valer ou não
– Agora anda cá tu. nem se o 369 passou de ano. Mas foi a primeira vez que,
Imediatamente eu deixei de ver fosse o que fosse, que sem ainda saber o nome, vi na prática em que consistia o
não fosse o ponteiro a atingir-me por todos os lados e mais controlo pelos resultados. Como pedagogia, foi uma exce-
algum. lente lição.
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