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cróNicas
JAciNTo rego De ALmeiDA
1952.0049
chegou, atirou gás lacrimogéneo e a manifestação deslocou-
-se a correr em direcção ao Jardim do Luxemburgo.
Afastei-me com os olhos a chorar por efeito do gás. Trope-
A angústia do dia-a-dia cei no passeio e quase caí. À noite, na televisão passava um
concurso, o apresentador dizia, “vamos dar os prémios, um
serviço de chá de doze peças revestidas a…”, houve uma
interrupção e apareceu um locutor, sujeito novo, louro, que
disse em tom grave que uma refinaria tinha sido ocupada
A informação diária enche-nos de apreensão e angústia. por manifestantes e temiam-se dificuldades de abasteci-
Após a sentença do caso Casa Pia, a maioria dos condena- mento de combustível nos próximos dias, depois voltou o
dos afirmou-se inocente na televisão, rádio e jornais; a concurso e desliguei a televisão. Na manhã seguinte, li num
crise do orçamento invadiu as nossas casas, “a dívida do jornal que a questão das reformas em França não é o pro-
próximo ano será a maior desde 1851”; o optimismo do blema de fundo é apenas a ponta do iceberg. Todo o iceberg
primeiro-ministro é desmentido a cada nova avaliação das tem uma ponta, pensei, embora eu já tenha visto muitos,
agências internacionais de “rating”; o líder do maior parti- na televisão, que são planos (ou pelo menos parecem) como
do de oposição parecia não saber mais o que dizer, mas campos de futebol. Mas adiante.
apesar disso subia nas pesquisas de opinião;a reforma do Dias depois, ao chegar a Lisboa li num jornal uma
estado social (no sentido de retirar direitos aos cidadãos) afirmação do Presidente da República que me encheu de
é alardeada; e pairavamos silêncios do Presidente da Repú- alegria por vir ao encontro do meu pensamento: “Eu com-
blica e as múltiplas interpretações dos comentadores polí- preendo as pessoas, as notícias criam-lhes angústias em
ticos a respeito desses silêncios… relação ao futuro”, afirmou. É isso mesmo, pensei. Mas na
Entretanto, fui a Paris e aproveitei para ver um filme, notícia, o Presidente acrescentava: “É muito gratificante a
independente e de baixo orçamento,considerado uma proximidade que tenho mantido com os portugueses”. Reli
surpresa positiva da “rentrée” cinematográfica após ter a frase e a minha preocupação aumentou, comecei a suar,
participado de diversos festivais de cinema por esse mun- apesar do frio do lado de fora do aeroporto onde parei para
do fora. Trata-se de “Doubletake” do realizador belga fumar um cigarro, comecei a espirrar com alergia, senti as
Johan Grimonprez que tem como intérpretes Alfred minhas defesas a enfraquecerem. Ao meu lado, também a
Hitchcock, o seu sósia Ron Burrage, Richard Nixon, Niki- fumar, estava um homem de chapéu, o tipo de sujeito que
ta Khrushchev e John Kennedy entre outros. Trata-se de põe o chapéu em cima do coração quando passa a bandei-
um “thriller” político construído a partir de imagens de ra nacional, pensei. Dirigi-me a ele e perguntei-lhe se sabia
arquivo de televisão e cinema e inspira-se numa novela de que o nosso Presidente da República tem mantido uma
Jorge Luis Borges. O filme apresenta o tema da paranóia do maior proximidade com os portugueses. Ele não percebeu,
cidadão comum como metáfora da crise política. Analisa pediu-me para repetir a pergunta e eu perguntei-lhe se ele
a angústia e o medo que dominam as personagens hitch- tinha lido o jornal. Ele acabou por dizer que não lia o
cockianas. Que medo é esse? É o medo e a angústia que jornal há vários dias e nunca tinha visto a Presidente pes-
são passados ao cidadão comum pelos meios de comuni- soalmente. Voltei a ler a frase e pensei, o Presidente fala
cação social, sobretudo a televisão, em forma de notícias, pouco e quando o faz em momentos de crise, diz, em geral
reportagens e publicidade. São mostradas cenas de arquivo coisas óbvias na suposição de que ditas por ele (e não por
dos noticiários televisivos do tempo da guerra fria, tais qualquer outra pessoa) têm um peso maior. O facto de
como a crise dos mísseis em Cuba, o assassínio de Kenne- constatar que as notícias criam angústias em relação ao
dy e a viagem do então vice-presidente norte-americano futuro é muito positivo. Mas eu não sinto essa proximida-
Richard Nixon a Moscovo, anúncios de uma marca de café de que Cavaco Silva diz que tem mantido com os portu-
que por ser tão saboroso apazigua casais desavindos, imagens gueses, e o Presidente é um homem de bem, não ia mentir
da famosa série de televisão assinada pelo realizador, além a este respeito. Eu não só não sinto essa proximidade como
de intervenções do seu sósia. Alfred Hitchcock explorou não conheço ninguém que a sinta. Que portugueses serão
este assunto como nenhum outro cineasta. Serei apanhado? esses? perguntei-me. O erro deve ser meu e das pessoas
Serei tido como culpado sem o ser? O produto que estou que eu conheço. O erro só pode ser nosso, tenho que falar
a consumir é tão bom como diz a publicidade? Ou estar- com esses meus conhecidos, debater a questão com eles
-me-á a fazer mal à saúde? Os pássaros poderão ser peri- (tal como uma personagem de Alfred Hitchcock).
gosos? Até que ponto? Pode uma mulher viver duas vezes? O que eu sinto na realidade e não se trata de nenhuma
Depois de sair do cinema dirigi-me para a Palace Odeon paranóia é a crise – da justiça, do déficit público, do estado
e à porta do teatro havia um grupo de manifestantes, em social, além de outras – em forma de ameaça e medo a
sua maioria jovens estudantes, a gritar palavras de ordem entrar pela porta de casa.
contra a elevação da idade para a reforma encabeçados por E todos sabemos que pessoas assustadas e desmoraliza-
um homem que tocava tambor. O trânsito parou, a polícia das são mais fáceis de governar.
14 Boletim da associação dos PuPilos do exército