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cróNicas
erNANi BALSA
1960.0300
escrever sobre nós e os outros...
alguém me perguntou se quando escrevia, era sobre mais. os outros somos nós próprios, investidos em perso-
mim que o fazia, mesmo quando me debruçava sobre uma nalidades tão chegadas e tão diversas que nos cativam ou
terceira pessoa. não soube responder. tergiversei, tartamu- nos chocam, mas das quais podemos sempre extrair uma
deei, elaborei um discurso redondo e amorfo, sem eu réstia de esperança para o entendimento comum das coi-
próprio saber a resposta que talvez não quisesse dar. sas e dos seres que cada um de nós interpreta na vida.
é sempre difícil dissociarmo-nos de nós quando escre- escrevo porque quero entender-me e entender os outros.
vemos, porque a escrita vem de dentro de nós próprios, escrevo porque a minha história podia ser a história do
quiçá da alma, se é que esta figura de estilo existe no outro. escrevo porque todos temos coisas a dizer, mesmo
desconhecimento que temos do nosso corpo metafísico. quando insistimos no silêncio dos nossos medos e da nos-
tudo o que escrevo provem daquilo que o meu cérebro sa angústia. o silêncio da nossa ignorância perante a imen-
processa nos mais recônditos lugares da memória, do co- sidão daquilo que não conhecemos…
nhecimento e do racional, mesmo aquele que não nos é por exemplo, recordar o passado, reflectir o presente e
deixado antever, senão quando nos perdemos na descober- projectar o futuro, são atitudes que todos nós, de uma ou
ta daquilo em que nunca antes pensámos. são momentos forma ou de outra, com maior ou menor frequência e com
de comunhão, não projectada, com os temas e as palavras mais ou menos objectividade, sempre vamos fazendo, como
que já se nos afloraram no pensamento, mas sobre as quais método de balanço do nosso espaço temporal de vida.
nunca trabalhámos com o mistério e as ferramentas da as experiências que nos marcaram e os hiatos do nosso
escrita. raramente, quando escrevo, sei do que vou escrever, percurso em que nada de verdadeiramente assinalável nos
apenas uma ténue ideia e mais que tudo, um raro e inten- aconteceu, bem como os momentos de excelência que
so impulso que sinto, que me faz exorcizar os veios de possamos ter vivido, podem-nos servir para criar uma base
emoção e sensibilidade que todos temos na profunda mina de conhecimento, para nos ajudar a encontrar razões e
das nossas reflexões. explicações para o percurso do nosso presente e assim
escrever sobre terceiros não deixa de ser um exercício, compreendermos melhor o que se passa connosco neste
em que mergulhamos no mais íntimo de nós próprios, ou espaço de tempo relativamente dinâmico que constitui a
porque esses outros que queremos incorporar estão infi- actualidade das nossas vidas.
nitamente presentes em nós ou porque as suas histórias o presente é aquilo que sentimos agora e o que pensa-
nos tocaram de tal maneira, que queremos, duma forma mos poder prever para o amanhã mas ele é tanto ou mais
inadiável, transmitir o júbilo e a ansiedade de sermos a imprevisível como o conjunto das nossas frustrações e
voz deles, que eles nunca terão ousado soltar e inscrever sucessos, essas uma quase certeza vivida, misturadas com
nos livros do quotidiano. o nosso estado de espírito em cada dia que começa e
escrever é sempre um acto de amor próprio e amor ainda as angústias e incógnitas que nos assaltam no passar
pelos outros, mesmo quando os personagens reflectem de cada minuto. é tudo isso, esse emaranhado de certezas,
caracteres diversos dos nossos ideais, e isto porque a vida conjecturas e desconhecido, que impulsiona e ao mesmo
é feita de diferenças, antagonismos e também de sentimen- tempo angustia a nossa existência. o amanhã, o futuro,
tos de identidade mútua que, tudo junto nos pode apro- a nossa projecção nos dias que ainda hão-de vir, tanto
ximar, mesmo no mais profundo desacordo de ideias, podem ser um pesadelo adiado como um sonho estóica
propósitos ou projectos de vida. a compreensão do outro, e benevolamente alimentado pela nossa vontade de con-
mesmo que não aceite pela nossa própria conduta de vida, quistarmos, num tempo ainda inexistente, aquilo que já
é a mais justa aproximação que podemos fazer a um en- hoje gostaríamos de estar a viver, antecipando assim o
tendimento universal da espécie humana. o reconhecimen- porvir de uma realidade que sempre nos surpreende ou
to que mesmo na diferença mais radical e profunda de desilude.
princípios e valores, pode residir um ténue elo de ligação o tempo é o veículo de toda a nossa existência e rara-
que aproxima a bondade da maldade, a justiça da injusti- mente respeita horários ou mesmo percursos, paragens e
ça, a paz da guerra ou a sabedoria da ausência dela. tudo apeadeiros, ou mesmo lugares marcados. tanto viajamos
pode ter um equilíbrio e uma remição das duras arestas sentados como amalgamados e espremidos no meio de
da ignomínia. escrever é tentar decifrar tudo isto e muito uma multidão imensa de seres igualmente à deriva neste
18 Boletim da associação dos PuPilos do exército