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Crónicas         A  TERRA  DOS  FARAÓS



                 o fim desse dia, estava   para dormir uma sesta na modes-      permaneceu trinta séculos (a he-
                 no bar Fishawi`s numa     ta casa em que vivia com a mulher    gemonia  saxónica  tem  menos  de
                 viela  de  Khan-al-Kha-   e ele espantou-se, “Não sabia nem    cinco  séculos  e  está  a  dar  pelas
                 libi, no Cairo islâmico,   que  era  candidato”,  disse  à  im-  costuras, pelo mundo fora visita-
       Na olhar o intenso movi-            prensa.  Naguib  surdo  e  quase     mos  espantados  monumentos
       mento de um dos maiores bazares     cego, perto de completar 80 anos     com vinte, cinco, três séculos e em
       do  Médio  Oriente,  com  sacas  a   quando ganhou o Nobel, ainda ia     alguns  continentes  já  é  patrimó-
       abarrotar  de  especiarias,  aromas   diariamente à redacção do jornal   nio histórico um belo prédio com
       exóticos,  lojas  a  vender  objectos   Al Ahram para onde escrevia fo-  200 anos) e organizou-se a ponto
       de  ouro,  prata,  cobre  e  bronze,  e   lhetins  e  editoriais,  e  nunca  dei-  de deixar a obra que deixou…
       também tecidos, roupas, bolsas e    xou  o  seu  país  (foi  representado   Um  sujeito  colombiano,  mais
       chinelos de pele de camelo. Estava   pela  sua  filha  em  Estocolmo  por   tarde  percebi  que  era  coronel  do
                        rodeado dos mi-    ocasião da entrega do Prémio No-     exército, estava entre os passagei-
                        naretes de gran-   bel), com excepção de uma viagem     ros que embarcaram no navio em
                        des  mesquitas     que fez a Israel. Passou a ser co-   que  viajei  de  Luxor  a  Assuão  e
                        da praça Midan     nhecido  como  “O  Dostoiévski  do   onde nos hospedámos durante al-
                        Hussein, um ce-    Cairo”  e  “O  Zola  do  Nilo”,  conti-  guns  dias  (os  conhecidos  barcos
                        nário  das  mil  e   nuou a escrever sobre o povo hu-   do Nilo já não fazem a viagem do
                        uma noites. Este   milde,  os  mendigos,  as  prostitu-  Cairo a Luxor, por motivos de se-
                        bazar é um labi-   tas… e diz-se que só contos ele te-  gurança,  existem  áreas  de  risco
                        rinto de ruas es-  ria escrito mais de seiscentos.      no deserto ocidental, que eu des-
                        treitas  que  nas-    Foi então que ouvi um turista     conhecia) e às tantas ele disse-me,
       Jacinto Almeida  ceram de velhos    alemão  a  dizer  para  outro,  na   enquanto  apreciávamos  encanta-
              (19510049  armazéns  e  an-  mesa  ao  lado  da  minha,  “Sabes   dos  os  oásis  e  a  vida  ribeirinha:
                        tigos  alojamen-   como são conhecidos os jogadores     “Conheço bem a corrupção, sabe o
                        tos para os mer-   da selecção egípcia de futebol? Fa-  meu país (fez uma pausa) e acho
       cadores das caravanas. De manhã     raós, os faraós”, e riram-se. Eu já   que nunca nenhum regime políti-
       visitara a Igreja de São Sérgio na   visitara as pirâmides de Gizé e en-  co se pode ter mantido com soli-
       região copta da cidade onde Ma-     trara,  com  muita  dificuldade  na   dez  se  a  corrupção  não  estiver
       ria, José e Cristo se teriam abriga-  do faraó Khafre (senti falta de ar,   muito, muito bem organizada. Os
       do  numa  cripta,  quando  da  fuga   sou pré asmático e regressei à luz   faraós no seu tempo…”.
       para o Egipto.                      do dia no meio do caminho), esti-       “Não podemos aplicar as cate-
          No Cairo, no meio do trânsito    vera em Luxor, Assuão, e integra-    gorias sociológicas e políticas dos
       caótico e da sujeira das ruas, vê-se   do numa coluna de autocarros de   nossos  dias  aos  séculos  XII  ou
       a História como num filme e tam-    turismo  acompanhado  por  jeeps     XXV antes de Cristo…”, ponderei,
       bém se ouvem os seus ecos                                                     mas em vão. Ele falou longa-
       (talvez esse ecos sejam úni-                                                  mente sobre o mundo egípcio
       cos, nem em Roma consegui                                                     à luz da corrupção tal como a
       ouvi-los  com  tanta  nitidez,                                                conhecemos:
       pensei).                                                                          “ O sonho de qualquer po-
          Mas      voltando      ao                                                  lítico, e o senhor sabe disso,
       Fishawi`s.  Enquanto  bebia                                                   sempre  foi  e  é  ter  poder  a
       um  chá  de  menta  e  via  as                                                vida toda. Pois bem, os fara-
       pessoas  a  fumarem  sheeha                                                   ós queriam ter poder mesmo
       um  empregado  dizia-me                                                       depois  de  morrerem  e  tam-
       que o bar não fecha as por-                                                   bém  quando  ressuscitassem
       tas  há  mais  de  duzentos                                                   para voltar a governar o povo,
       anos,  e  foi  então  que  inda-                                              e eles acreditavam que pode-
       guei a respeito da mesa ha-                                                   riam ressuscitar.
       bitualmente     frequentada                                                      “E  então?”,  disse  eu  para
       por Naguib Mahfouz, escri-                                                    ele continuar o raciocínio.
       tor egípcio, Prémio Nobel de                                                     Ele pediu uma sandes de
       literatura  em  1988.  Ele  apontou-  do exército armados de metralha-   presunto ao empregado do bar da
       me um recanto onde estavam sen-     dora  fora  visitar  Abu  Simbel,  a   coberta. “É servido?”. Agradeci a
       tados  vários  jovens.  Quando  o   poucos  quilómetros  da  fronteira   atenção e comecei a enrolar um ci-
       Prémio  foi  anunciado  foram  en-  com o Sudão. A palavra faraó não     garro.
       contrar  Naguib  preparando-se      me saía da cabeça. Um regime que        “Então os faraós eram mumifi-


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