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mOmEnTOS                   Crónicas




                 esde madrugada, que o      prazenteiro,  do  gato  mimado  no   faminto.
                 dia tem sido uma contí-    colo do dono, quando o caudal cor-     A vida continua com o somató-
                 nua  e  monocórdica  su-   re suave e ligeiro, ouve-se, agora,   rio  de  todos  os  momentos  e,  por
                 cessão de chuva branda,    na brusca corrente que se foi for-  entre  os  ramos,  os  pardais  e  os
       Dentrecortada,  de  quan-            mando, e que teve origem na serra,   melros  saltitam  à  espera  duma
       do  em  vez,  por  algumas  bátegas   de  onde  provém,  o  prolongado  e   acalmia, mesmo que passageira.
       um  pouco  mais  fortes,  que  rico-  rouco rosnar do cão acicatado.        Aponto-lhos  e  eles,  vislum-
       cheteiam  nas  vidraças.  Quando       Alegres, alvoroçados e despre-    brando-os, logo encetam uma sé-
       essa  mudança  ocorre,  provoca      ocupados, sem se darem conta das    rie ininterrupta de questões a que
       logo, nos meus netos, uma corre-     consequências, abrem, de repente,   não consigo responder, totalmen-
       ria apressada em direcção à janela   a janela de par em par, para me-    te,  tal  a  intensidade  com  que  são
       do meu escritório, onde me encon-    lhor  escutarem  os  ruídos  que  os   formuladas. E, se algumas respos-
       tro, para melhor apreciarem estes    despertaram  dos  seus  entreteni-  tas satisfazem o seu apetite origi-
                        normais     fenó-   mentos, e eu, sentindo uma brisa    nal,  outras  aguçam-lhes  a  imagi-
                        menos  da  natu-    bem  fresca  penetrar  na  sala,  em   nação e transformam-se em nova
                        reza,  enquanto     vez de invocar a minha incontesta-  catadupa de interrogações a que é
                        resguardados  e     da autoridade de adulto friorento   difícil dar cabal satisfação, tal a ca-
                        ao  abrigo  dos     e interrompido nos seus afazeres,   dência a que são produzidas. En-
                        seus incómodos,     dirijo-me  em  sua  direcção,  e  dou   tão, por vezes, o silêncio entrecor-
                        e  que  vêm  que-   por mim a sentir também os pin-     tado por um ou outro monossíla-
                        brar a rotina dos   gos de chuva molharem-me a cara     bo, é a solução mais prudente, por-
                        seus divertimen-    enruguecida.                        que as respostas já não se exigem,
       António Barroso  tos,  ou  esquecer    É tão bom, por vezes, podermo-    na busca incessante de novas per-
             (19460120)  a luta pela posse   nos sentir, novamente, crianças!...  guntas.
                        dum  determina-       Sem entraves!... Sem constran-
       do brinquedo.                        gimentos!...
          Para  trás,  jazem,  espalhados  e   Apenas, e tão só, crianças!...    «Por fim o silêncio chega e
       dispersos pelo chão, os variados e     Salpicados,  mas  unidos  num      permanece na muda con-
       inúmeros  despojos  das  muitas  e   abraço que nos possibilita a esta-
       vitoriosas  batalhas  travadas  nas   dia,  simultânea,  na  janela  escan-  templação deste desabafo
       horas antecedentes, as espadas de    carada,  somos  quatro  ouvintes             da natureza»
       papelão, os capacetes confecciona-   contemplativos  e  atentos  a  todos
       dos com folhas de jornais, os pa-    os barulhos exteriores e, enquanto
       peis  rasgados  com  muitos  dese-   eles, felizes, deliciados e risonhos,   Por fim o silêncio chega e per-
       nhos  incompletos,  as  coloridas    estendem as pequenas mãos para      manece  na  muda  contemplação
       peças de plástico das construções    sentirem os pingos desfazerem-se    deste  desabafo  da  natureza,  e  a
       inacabadas,  ou  os  lápis  com  que   nas palmas e escorrerem por entre   chuva teima em salpicar-nos.
       tentaram  reproduzir  cenas  dos     os  dedos,  como  ilusões  dum  so-    Mais  tarde,  passada  a  euforia
       seus imaginários.                                                        do  instante,  na  solidão  dos  meus
          A  irrequieta  despreocupação     «É tão bom, por vezes, po-          momentos íntimos, dou por mim a
       da juventude contrasta com a roti-                                       pensar  que  a  verdadeira  felicida-
       na dos arrumos e a meticulosida-      dermo-nos sentir, nova-            de, de que tanto se fala e apregoa e
       de que o tempo e a idade me foram        mente, crianças!...»            que  apenas  uns  poucos  conse-
       trazendo.                                                                guem  alcançar,  parece  consistir,
          A ribeira, nas traseiras da mi-                                       tão somente, neste quadro singelo
       nha casa, que já corria caudalosa    nho, eu olho, em silêncio, ao longo   dum avô abraçado a três netos, to-
       durante  a  noite,  foi  engrossando,   do quintal sobranceiro, a folha da   dos  debruçados  numa  janela  es-
       ainda  mais,  ao  longo  do  dia.  Em   oliveira, que não dobra, antes apa-  cancarada,  indiferentes  à  chuva
       vez do lânguido ronronar, suave e    ra a chuva com a sofreguidão do     que lhes molha os rostos.















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