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Crónicas         GuINÉ-BISSAu, uM PAíS À DERIVA

         A                                    melodramáticas.                      circular  pelas  estradas  da  Guiné,
                    única vez que estivera na
                    Guiné,  em  1966,  era  jo-
                                                                                   pensei.
                                                 As coisas sempre podem ser pio-
                                                                                     O  avião  aterrou  em  Bissau.  Pedi
                    vem  oficial  da  Marinha
                                              res do que podemos imaginar. Amíl-
                    embarcado  numa  fraga-
                                                                                   ao motorista para ir até à praça cen-
                                              car  Cabral,  assassinado  por  Inocên-
                    ta, cujo nome, se bem me
         lembro,  era  “Corte  Real”.  O  coman-  cio Cani, com uma rajada de metra-  tral,  estava  cedo  para  o  almoço  que
                                                                                   tinha marcado com o senhor F. num
                                              lhadora, na noite de Conacri de 20 de
         dante do navio, Peixoto Correia, fora   Janeiro  de  1973,  nunca  poderia  ter   conhecido  restaurante  de  Bissau,  o
         Ministro do Ultramar e Governador    imaginado  que  o  mundo  mudaria    Dom  Bifanas.  O  antigo  palácio  do
         daquela  “província  ultramarina”.   tanto, que a consciência política per-  Presidente  da  República  ainda  está
         Nos dois dias que estive em Bissau,   deria  importância  nas  décadas  se-  em ruínas, foi bombardeado na guer-
         encontrei-me com camaradas em co-    guintes e que a sua terra se transfor-  ra civil de 1998-1999. Não reconheci a
         missão,  alguns  na  guerra,  no  mato,   maria naquilo que é.            antiga  Associação  Comercial,  agora
         de passagem pela capital da “provín-    O  secretário-geral  das  Nações   sede do PAIGC, mal conservada com
                           cia”. Com um de-   Unidas, em relatório enviado ao Con-  pouco movimento. Fui para o restau-
                           les  encontrei-me   selho de Segurança há cerca de dois   rante  e  sentei-me.  Na  mesa  ao  lado
                           na  Associação     anos, destacou que o tráfico de dro-  estavam  dois  homens  que  bebiam
                           Comercial (actual   gas  ameaça  subverter  os  primeiros   cerveja. Um deles era um negro velho
                           sede  do  PAIGC),   passos  do  processo  de  democratiza-  com  o  cabelo  todo  branco  e  o  outro
                           ao lado do palácio   ção  da  Guiné-Bissau.  E  posterior-  talvez  fosse  filho  dele  ou  talvez  não
                           do  Governador,    mente  realizou-se  uma  conferência   fosse, vá-se lá saber. O velho franziu
                           um clube onde se   internacional, em Lisboa, com a par-  as rugas da testa e disse:
                           reunia a pequena   ticipação  dos  E.U.A.,  U.E.  e  O.N.U.   “Disseram-me que morreu o Bar-
          Jacinto Almeida  elite colonial. Ou-  para debater a questão do tráfico de   rigana.”
                (19510049  vimos  um  baru-   drogas na África Ocidental em espe-    “Quem?”
                           lho,  “são  fogue-  cial  na  Guiné-Bissau.  Este  pequeno   “O  Barrigana.  Foi  guarda-redes
                           tes?”  indaguei,  “é   país, pelos piores motivos, entrou na   do Porto e da selecção nacional lá em
         pá,  são  os  tiros  no  mato,  ouvem-se   agenda internacional.          Portugal. Era o meu ídolo quando eu
         aqui quando o vento está…”, e olhou     O Produto Interno Bruto da Gui-   jogava.”
         para o céu. “Não há nada, nada pode   né-Bissau  é  de  aproximadamente     O homem mais novo, deu de om-
         ser pior do que a guerra”, disse o meu   300  milhões  de  dólares,  as  receitas   bros e respondeu baixo:
         camarada nessa tarde. Alguns meses   do  orçamento  do  estado  são  apenas   “Nunca ouvi falar nele.”
         depois, gravemente ferido, ele regres-  30  milhões,  as  despesas  consomem   O  senhor  F.  chegou  e  trocámos
         sou a Lisboa.                        80 milhões (45% deste valor destina-  cumprimentos.
            Nos anos sessenta, o povo guine-  se à manutenção das forças armadas      Os dois homens da mesa ao lado
         ense,  ou  parte  dele,  tinha  um  rumo   com efectivos estimados em sete mil   levantaram-se  e  despediram-se  à
         pelo menos simbólico: a libertação do   militares) e os 50 milhões de dólares   porta  do  restaurante  e,  pela  janela
         jugo colonial, a independência e a es-  de deficit são suportados por doado-  aberta, vimos o mais novo que acom-
         perança no futuro. Foi em Bissau que,   res  internacionais.  Qualquer  destes
         no  início  dos  anos  setenta,  ganhou   valores representa apenas uma per-
         forma o Movimento dos Capitães que   centagem, maior ou menor, da factu-
         levaria ao 25 de Abril “e a uma dupla   ração total de cocaína (cotada ao pre-
         vitória, a independência da Guiné e a   ço  de  venda  ao  consumidor)  que  se
         democracia para Portugal”. Vão lon-  estima ser armazenada e distribuída
         ge esses tempos.                     no  mercado  internacional  oriunda
            A fragata em que embarquei não    daquela  antiga  colónia  portuguesa.
         existe mais, foi vendida como sucata,   Só  os  670  quilos  apreendidos  e,  de-
         Peixoto Correia morreu e há dias vi o   pois, desaparecidos dos cofres do Te-
         meu antigo camarada na Baixa, enve-  souro  Público  do  país  na  gestão  do
         lhecido, a coxear. A Guiné continua a   ex-primeiro  ministro  Aristides  Go-
         sua  história:  independência,  golpes   mes (assunto divulgado pelas autori-
         de  estado,  guerra  civil,  assassinatos   dades locais e pela imprensa interna-
         políticos, corrupção e traições como   cional), representam um valor supe-
         peças de Shakespeare e histórias re-  rior às receitas do orçamento do país
         pletas de raptos, seduções, fugas de   e bem acomodados, esses pacotes de
         última hora e pessoas enterradas em   cocaína podem caber no porta-baga-
         lugares sombrios no meio de flores-  gem e no assento de trás de um dos
         tas  e  humidade  como  boas  novelas   carros  de  alto  luxo  que  passaram  a



           26 | Associação dos Pupilos do Exército                                                                                                                                                              Associação dos Pupilos do Exército | 27
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