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panhava o admirador do Barrigana, entrar no carro,
um Porsche.
O senhor F., disse:
“O valor daquele carro é superior à soma dos or-
denados de um general deste país durante mais de
cinquenta anos e os vencimentos estão sempre atra-
sados vários meses. Quem anda num carro daque-
les em Bissau com certeza tem ligações ao tráfico de
drogas. (Fez uma pausa, para respirar) A Guiné não
interessa às grandes empresas, tem poucas rique-
zas naturais e grande carência de capitais e infra-
estruturas. Além disso, a fragilidade da situação
política e o governo corrupto, deixam o país aban-
donado à sua própria sorte. Alguns cartéis do tráfi-
co de drogas, desde 2005, fizeram um toque a reu-
nir em relação a esta região de África, em particular
à Guiné-Bissau. Aqui, estamos a meio caminho en-
tre a América Latina e o mercado europeu, onde a
cocaína chega por via aérea através de correios hu-
manos, nos porões dos aviões ou por via marítima
até às costas da península ibérica. O senhor sabe o
que é o mais importante no negócio de drogas? Sabe
qual é a qualidade que tem que ter o traficante, seja
ele grande ou pequeno?”
“A coragem”, respondi enquanto experimentava
o caldo de mancarra.
“Não, nada disso. Essa não é uma qualidade im-
portante, pode dizer outra.”
“A confiança”.
“Também não, mas está mais perto”
Sorri e disse:
“Diga lá qual é essa qualidade que deve ter o bom
traficante.”
“A lealdade. O negócio da droga é um negócio de
lealdade e um sujeito pode não ser de absoluta con-
fiança e ser leal, leal como um bom cão. Está a perce-
ber?”, disse o senhor F..
Depois de mais de quarenta anos e após alguns
dias no país, a questão da paz e da guerra voltou a
assaltar-me. A paz pode ser pior do que a guerra?
Agora, nesta paz da Guiné-Bissau, não é propria-
mente paz, é uma guerra silenciosa em que não há
tiros, há marasmo, ausência de esperança, desalen-
to, como uma maldição que se abateu sobre este
país, espelho de séculos e séculos de abusos e des-
graças. Só há a mão pesada da corrupção e da misé-
ria.
Alguns meses depois desta minha viagem à Gui-
né foram assassinados o Chefe do Estado-Maior
General das Forças Armadas e o Presidente da Re-
pública, Nino Vieira.
E há poucos dias, uma artista plástica guineense
que muito estimo, residente em Lisboa, disse-me,
pesarosa: “o meu país, é um país adiado”. Mas é pior
do que isso, é um país à deriva como uma casca de
noz num mar revolto.
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