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Evocações        Só


                  ara o ano cumprem-se trin-  trazem tranquilidade e serenidade.   de-banho da segunda secção.
                  ta  anos  desde  que  entrei   A  primeira  vez  que  pensei  sobre   De  uma  das  vitrinas  que  alinha-
                  para o Pilão. Terei quaren-  ser-se diferente foi numa situação es-  vam os máximos da nossa literatura,
                  ta anos nessa altura e terei   piritualmente  muito  forte.  Deveria   retirou ardilosamente o Só de Antó-
         Ppassado  três  quartos  da          eu ter uns quinze anos quando vivi   nio Nobre, a perfeita imagem da ado-
         minha vida no Pilão, a fugir dele ou a   uma fase de grande aproximação ao   lescência inconformada mas, ao mes-
         encontrar-me com ele. O certo, é que   religioso. Frequentava muito a capela   mo tempo, incapaz.
         passei, desde esse dia 3 de Outubro   e, “sem ser convidado”, assisti ao lon-   Tinha descoberto a poesia perfei-
         de 1981, parte significativa da minha   ge a uma preparação de alunos mais   ta  deste  portuense  que  morreu  sem
         vida a pensar no “meu” Pilão, na mi-  novos  para  a  Primeira  Comunhão.   dobrar o século.
         nha forma de o ver e de me ver nessa   Aquela meia hora foi um bálsamo ex-  Hoje  leio,  por  exemplo,  de  Belos
         escola.  Sim,  porque  cada  um  tem  o   cepcional  naquela  idade  em  que  as   Ares de 1889:
         seu Pilão, a sua forma de viver e de   hormonas não nos deixam quietos e
                           ser pilão. Talvez o   apenas nos tornam inquietos.
                           nosso  maior  pro-    Pela primeira vez ouvi a banda so-  Meus dias de rapaz, de adolescente,
                           blema  enquanto    nora de 2001. Odisseia no Espaço, o    Abrem a boca a bocejar, sombrios:
                           grupo associativo   que eu não esquecerei nunca – afinal   Deslizam vagarosos, como os Rios,
                           seja  exactamente   havia vida para além do que se ouvia   Sucedem-se uns aos outros, igualmente.
                           essa incapacidade   na rádio e nas cassetes que se copia-  […]
                           de ver que somos   vam.  Na  conversa  que  se  gerou  no   Quero viver, eu sinto-o, mas não posso:
                           brutalmente  di-   fim, de tudo se falou. Tudo pertinen-
                           versos;  tendemos   te. Em especial algo que na altura me   E não sei, sendo assim enquanto moço,
                           a  criar  estereóti-  deixou boquiaberto: dizia o nosso in-  O que serei, então, depois de velho.
        Paulo Mendes Pinto  pos,  a  imaginar   terlocutor, aluno mais velho, “porque
                (19810353)  que  somos  todos   hei-de vestir calças de ganga pré-la-
                           iguais.  Pura  ilu-  vadas? Apenas porque todos as ves-   A  dor  de  António  Nobre  tocava
         são.                                 tem?”. Bem, onde vai essa moda das   muitos de nós. Uma dor que era uma
            Nos  últimos  tempos,  tenho-me   calças quase brancas. Felizmente, as   solidão  profunda  num  estar  ampla-
         cruzado  com  muita  gente  dos  Pupi-  conversas  com  ele  ainda  as  tenho,   mente acompanhado. Só, com Antó-
         los. E nos locais mais variados e ines-  pena que com a pouca regularidade   nio  Nobre.  Mas  muitos,  também,
         perados. Há duas semanas, foi numa   que as nossa vidas o permitem.       aturdidos pelo barulho do tempo que
         festinha de anos da minha filha; lá es-  Nesse  dia,  nessa  noite,  consegui   passava, quase não davam por nada,
         tava  um  pai  babado  –  tão  babado   iludir  a  facilmente  ludibriável  vigi-  refugiando-se na criação dos tais es-
         quanto  eu  –  a  acompanhar  a  sua   lância e fiquei nos claustros a discor-  tereótipos das primeiras linhas deste
         criança. Hoje, foi no concorrido Vas-  rer com alguns colegas. De muito se   texto.
         co da Gama; entre um grupo de tran-  falou. Muito de quantidade, mas tam-   Uns ficaram. Outros saíram assim
         seuntes e outro, lá nos conseguimos   bém  muito  de  qualidade.  Acho  que   que  puderam.  Muitos,  quase  todos,
         cruzar, se bem que com alguma difi-  poucas  vezes  fui  tão  crescido  como   quebraram  os  laços  a  essa  grande
         culdade devido ao tráfego.           em algumas das mais profundas con-   mãe que espiritualmente nos alimen-
            Este encontro de hoje, com alguém   versas  na  beira  daquele  lago  qui-  tava  mas  que,  também,  nos  tolhia.
         que eu não via há quase duas dezenas   nhentista. Em percursos quadrangu-  Hoje,  com  o  silêncio  da  ausência,
         de anos, foi inspirador. Não sei por-  lares  naquele  claustro,  vivi  o  que   quantos de nós aparecem nas reuni-
         quê,  porque  ligações  neurológicas,   eram  os  peripatéticos  e  como  esse   ões, nos encontros, nos almoços? Um
         uma  catadupa  de  pensamentos  me   exercício  de  caminhada  e  de  pensa-  «poucos» que mostra que, afinal, éra-
         assomaram. O centro desse cruzar de   mento me libertava.                 mos muitos os que estavam sós.
         linhas foi a diferença. Ser diferente.   Com algumas das situações mais     Hoje, ainda sem vestir as calças de
         Ser-se diferente.                    complexas que já encontrei, com al-  ganga  da  moda,  continuo  a  desejar
            Sempre  cultivei  a  diferença.  Por   gumas das declarações mais fortes a   recusar o que não me remeta para o
         vezes, a carneirada causou-me algum   que  assisti,  com  alguns  dos  dramas   sublime. Acho que ninguém se deve-
         desejo.  Mas  quase  instintivamente   humanos  mais  irremediáveis  que   ria contentar com menos. Ou, ao me-
         percebia que o meu lugar era irreme-  acompanhei,  acho  que  vivi,  naquele   nos, que quando nos atemos ao mais
         diavelmente,  ou  felizmente,  ao  lado.   luar, dos momentos mais intensos e   medíocre  e  mais  vulgar,  saibamos
         Para o bem e para o mal. Quanto mais   que mais me preencheram até hoje.   que isso é, simplesmente, o normal, o
         não fosse, por questões de gosto; qua-  Numa  dessas  manhãs  seguintes,   vulgar e o banal.
         se sempre por opção relativa a formas   entre o sono de tão tarde dormir e a   Tantas  vezes  penso  nos  que  fica-
         de ver o mundo e a vida. Esta postura   vontade de percorrer rapidamente o   ram  pelo  caminho.  Não  estão  sós.
         valeu-me alguns dissabores mas, aci-  ermo que eram muitas das aulas, um   Não  imaginam  como  estão  acompa-
         ma  de  tudo,  valeu-me  acções  que   colega levou-me à solene sala de por-  nhados por todos os que insistem em
         hoje, mais de vinte anos depois, me   tuguês  que  havia  por  cima  da  casa-  dizer que não estão sós…


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