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EVOcAÇÕEs











                                  Tempo de Memória


           FERNANDO S. CRISTO
           19550373




                  s  claustros,  decrépitos  e  silenciosos,  perdiam-se  no   Em  face  do  estranho  acontecimento,  a  direcção  do
           “Ocentro  do  vetusto  e  primitivo  aglomerado,  entre  o   Instituto entendeu e decretou: – Até que os responsáveis
           refeitório e a enfermaria, por um a banda e as camaratas ao   pela gracinha se acusassem, o Batalhão Escolar estava im-
           fundo” – Assim escreve no livro Malta Brava, de Alexandre   pedido de sair ao fim de semana. Este tipo de sanção, levou
           Cabral, Pilão de 1929 .                            de imediato a que os alunos mais antigos (e não só os mais
                             1
              No  seu  romance,  falava  sempre  com  carinho  e  reco-  velhos) puxassem a si a resolução do assunto pois, fim-de-
           nhecimento no tempo que passou no Instituto dos Pupilos   semana estragado por um problema dos putos do Ciclo,
           do Exército.                                       não tinha cabimento.
              Na página 157, descreve uma brincadeira que ia custar   Se os tinteiros eram das aulas do Ciclo, o «mijo», era
           caro:                                              dos putos. Lógica de quem não era muito de se esforçar a
              “Um aluno, indigno de continuar nesta casa, foi ao lava-  pensar…
           tório  da  barbearia  fazer  o  serviço  que  se  faz  na  retrete”  –   Ao  fim  do  jantar  e  antes  da  autorização  para  sair  do
           palavras ameaçadoras do prefeito. Nas páginas 160 a 162,   refeitório  um  graduado,  informou  em  voz  alta  que  –  Os
           “na presença do Trancas, o Director, que no laboratório pegou   alunos  do  Ciclo  devem  formar  por  turmas  nos  claustros.
           na medida de litro e verificou o seu conteúdo. O mijo enchia-   Todos nós putos, miúdos com 11/12 anos de idade, ficámos
           -a de cogulo – Quem foi que urinou aqui?” – Foi então dado   apreensivos. Dito e feito, formatura nos claustros e os chefes
           o alerta geral; Ninguém fala, ninguém bufa!!.      de turma apresentaram as mesmas a um grupo de alunos,
              Naqueles tempos, os acontecimentos tidos como desa-  os tais antigos ou mais velhos (venha o diabo e escolha).
           gradáveis, foram directamente julgados e sancionados pela   Fomos então advertidos para informar quem ou que se
           Direcção do Instituto, frente a frente, olhos nos olhos.  acusassem  aqueles  que  tinham  «mijado»  nos  tinteiros,
              Este episódio, é parte de uma época que se reporta ao   porque senão…ameaças não faltaram. Ninguém se acusou
           inicio dos anos trinta e que no Malta Brava, se conta com   e ninguém acusou!
           pormenor.                                             Foi assim, que todos nós, fomos massacrados com ber-
              Muitos anos depois, 1956/1957, algumas destas cenas   ros  e  «porrada». A  minha  memória,  aqui,  não  me  deixa
           repetem-se. Nesta época, não recordo a presença directa,   dizer ou melhor, descrever quão brutais foram aqueles que
           para apuramento de responsabilidades e respectivo sancio-  se  intitulavam  serem  já  homens  mas  não  passavam  de
           namento, de qualquer director ou outros, que por direito,   apenas serem uns medíocres e indignos. Os momentos de
                                    possam actuar em represen-  angústia, fazem parte das minhas memórias. Falar desses
                                    tação do dito, frente a fren-  momentos, não é abrir feridas, mas sim falar verdade.
                                    te, olhos nos olhos.         Estes episódios também fazem parte da história, mas
                                       Assim, os claustros, local   esta  não  era  a  Malta  Brava  de Alexandre  Cabral.  Havia
                                    de culto e respeito são tes-  tropelias e desaguisados entre alunos, um para um, estala-
                                    temunho de um acto incor-  da para frente, murro para cá e para lá, isso aconteceu a
                                    recto,  doloroso,  triste.  Ali,   todos e por vezes até ficavam amigos, mas aquilo dos tin-
                                    chorei  lágrimas  de  medo,   teiros… Não!!!!!
                                    sofrimento e revolta.        Felizmente, pouco tempo depois com outra Direcção
                                       Estava  no  segundo  ano   em  permanência,  de  forma  gradual  foi-se  recuperando
                                    do Ciclo Geral Preparatório.   pedagógica  e  disciplinarmente  o  Instituto.  Enquanto  o
                                    Um dia, correu a noticia de   corpo me obedecer, quando visito o Pilão, vou sempre aos
                                    que os tinteiros das secretá-  claustros e revejo ainda, aqueles momentos menos «ridentes».
                                    rias das aulas do ciclo esta-  Como disse, a memória não esquece, no entanto, cin-
                                    vam cheios de «mijo»! – Co-   quenta e cinco anos depois… o tempo tudo perdoa.
                                                                 E os claustros ?... menos decrépitos, mas sempre silen-
                                    mo? «mijaram» nos tinteiros?   ciosos.
                                    – o director já sabe?... – isto
                                    vai dar «bronca»!         (1)   Cabral, Alexandre (1997). Malta Brava, Editorial Caminho, Alfragide, p. 3.



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