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EVOcAÇÕEs






                               1955-1963, segundo


                          capítulo da minha vida



           Faço-me homem em Lisboa. Autonomizo-me cedo.                                           JORGE DE C. ALVES
                                                                                                       19550278




                utubro de 1955. Tenho 10 anos, o meu pai deixa-me
           Ono  Pilão. Vejo-o  partir,  cada  dois  passos  olha  para
           trás  para  me  acenar,  não  está  a  dizer-me  adeus,  está  a
           hesitar entre deixar-me aqui e levar-me de volta com ele
           para Tomar. Fico sozinho.
              Antes de partirem, o meu pai e o pai do Gibi, que se
           conhecem, endossam para nós esse conhecimento. Num
           minuto ficamos amigos, meio século depois ainda somos.
              Sou puto, por definição bombo de praxe. Protejo-me,
           esquivo-me, defendo-me.
              Estou sempre rodeado por gente, uma nova família de
           quatrocentas  pessoas.  Aprendo  a  isolar-me  no  meio  da
           algazarra. Giro os meus gostos e os meus gastos; o meu
           tempo,  a  minha  impaciência;  as  minhas  preferências  e
           aversões; sou autónomo, senhor precoce de mim próprio.
              Já é Dezembro, vou de férias a Tomar. Tomo o comboio   Uma  vez,  seguro  da  minha  razão,  insubordino-me,  e
           em  Santa  Apolónia,  mudo  no  Entroncamento,  e  uma   para surpresa minha, saio incólume. Insubordino-me mais
           eternidade depois, chego aos braços dos meus pais e da   vezes.
           minha  irmã. Aos  10  anos,  robustecido  por  esta  solitária   Sou soldado em miniatura. Tenho farda, ando de arma
           aventura, olho de cima para os meus colegas de escola que   ao ombro. Esforço tanto a mente como o corpo. Faço gi-
           nunca  saíram  de  casa.  Persisto  no  comboio  para Tomar,   nástica,  jogo  todos  os  jogos  de  bola,  e  alguns  sem  ela,
           sem falha, sempre que há férias.                   calço luvas de boxe, remo no Tejo em Xabregas, voo em
              Em  59  os  meus  pais  mudam-se  para  Moçambique.   Alverca e sou piloto aos 17 anos. Faço fogo de metralha-
           Continuo  a  tomar  o  comboio  nas  férias,  mas  agora  em   dora aos 15, exercícios de ordem unida todas as quartas-
           direção a Leiria. Descubro a minha terra natal. Tenho acne,   -feiras; marcho à conquista da Serra de Monsanto, ali em
           buço,  e  tudo  o  que  lhes  está  associado.  Por  duas  vezes   Benfica, para surpresa das marafonas e da respectiva clien-
           troco o comboio pelo avião, vou a Moçambique, encanto-   tela; defendo o aeroporto da Portela de inimigos imaginá-
           -me com as praias, com o remanso, com o exotismo, com   rios  numa  fria  noite  de  Junho,  antes  de  trocar  o  meu
           os camarões grelhados.                             posto por um baile de aldeia às portas da capital.
              Cresço. Leio tudo o que me vem à mão, o Século, a   Recebo educação militar, fico esclarecido. Já tenho o
           Bola, a Seara Nova, o London Illustrated News, o Jane’s   meu quinhão, não me fez mal, acho mesmo que me fez
           War  Airplanes,  o  Punch,  Dostoievski,  Tolstoi,  Faulkner,   bem, mas não quero mais, obrigado.
           Hemingway, Steinbeck, Stendhal, Pascal, não sei como é   Entretanto, faço amizades para a vida, mesmo quando
           que tenho tanto tempo e apetite. Estudo, penso, escrevo.   as  perco.  Ao  fim  de  semana  saio,  cometo  o  pecado  de
           Descubro a força das ideias, e algumas ideias fortes.  esquecer a farda, e fico paisano. Primeiro, assento arraiais
              O oficial de dia apanha-me a ler um livro na forma-  em Arroios,  depois  perto  da  Morais  Soares,  e  descubro
           tura. É uma blasfémia, ler na formatura! Manda que lhe   Lisboa. A boa, e a assim-assim. Quase sempre com o “Tótó”,
           dê  o  livro,  eu  dou,  chama-se “O  Dedo  de  Deus”.  Bom,   que vive intensamente, como que adivinhando o fim pre-
           com  um  título  destes  é  certamente  leitura  edificante.   coce.
           Admoesta-me,  manda-me  de  volta  para  a  forma. Ainda   Os  fins  de  semana  são  curtos,  e  as  paredes  do  Pilão
           bem que não leu este livro do Caldwell. Eu estou a lê-lo   permeáveis e perfuradas, como é de praxe em convento
           afincadamente. É a violência absurda, a miséria, a prepo-  que foi de frades. Aprendo passagens, nalgumas noites sou
           tência, o erotismo, enfim, a vida. Tomei nas minhas mãos   paisano clandestino.
           a minha educação... geral.                            Entro puto, saio homem.


                                                                             Boletim da Associação dos Pupilos do Exército  |  31
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