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EVOcAÇÕEs











                                  Uma história, uma lição


           MOTA DE MESQUITA
           19440272




                história que vos vou contar, uma história verídica,   verem quem era o pai do alferes. Eis que se levanta de
           A  ocorreu em fins da década de vinte do século pas-  uma caixa de engraxador um homem vestindo fato-ma-
           sado ou, quando muito, em princípio da década de trinta,   caco com a caixa na mão. Algo embaraçado e surpreen-
           portanto, em data que não posso precisar. Seu protago-  dido com a atitude do filho, hesita no que fazer, voltando-
           nista, um jovem alferes de Administração Militar, acaba-  -se ouvir a voz do alferes: pai, paizinho, venha cá, venha
           do de ser promovido.                               cá. O engraxador da Brasileira avança então, com a caixa
              Para que melhor possamos apreciar o acontecimento   e, quando chega à mesa onde se encontrava o filho, este
           é importante reportarmo-nos à época em que os militares   diz-lhe: eu não vim cá para que me engraxe os sapatos,
           estavam altamente prestigiados e eram muito apreciados   mas  sim  para  tomar  um  café  consigo;  sente-se  aqui  na
           pela população, não tanto por serem os suportes da dita-  minha mesa. A reacção dos que presenciaram a cena foi
           dura, mas pelos serviços que haviam prestado às popula-  de forte aplauso ao nosso jovem alferes, rendidos ao seu
           ções. Havia passado um período de fortes convulsões, com   gesto.
           revoluções quase mensais e greves gerais que paralisaram   O nosso alferes chamava-se Álvaro de Oliveira.  Veio
                                                                                                         1
           o País. Não havia transportes públicos e o caos estabele-  a ser um distinto oficial de Administração Militar, tendo
           ceu-se. Não funcionavam os caminhos-de-ferro e os res-  transitado para a Força Aérea em 1952, quando este ramo
           tantes serviços públicos estavam igualmente sem funcio-  das Forças Armadas foi criado, e onde continuou a ser um
           nar.                                               oficial distinto, com muito prestígio, alcançando o posto
              Face ao caos criado, foram então chamados a resol-   de brigadeiro.
           ver a situação os militares, tendo-se chegado a ver ofi-   Não tive a oportunidade de servir com ele no Exér-
           ciais  e  sargentos  a  conduzir  eléctricos  em  Lisboa  e  a   cito,  pois  que,  quando  transitou  para  a  Força Aérea  foi
           substituir os maquinistas para que os comboios funcio-  quando eu saí da Escola do Exército. Porém, anos mais
           nassem.                                            tarde,  vim  a  conhecê-lo  muito  bem,  quando  na  década
              Será bom recordar que nos dezasseis anos da primei-  de sessenta foi presidente da direcção da Associação dos
           ra República houve quarenta e três governos o que, na-  Pupilos do Exército e eu vice-presidente.
           turalmente, não facilitava a governação do País.      Dizia-se ser um homem difícil. Não era. O que era,
              Foi, pois, o apoio que os militares prestaram às popu-  era  uma  pessoa  que  em  tudo  o  que  fazia  colocava  a
           lações que granjeou o seu prestígio e admiração, ao pon-  excelência e exigia a mesma excelência a todos os que
           to de terem prazer em andar fardados na via pública e   com ele trabalhavam.
           até  frequentarem  os  espectáculos  públicos  fazendo  uso   Passaram-se  os  anos  e,  nas  vésperas  do  Natal  de
           da farda, hábito que, aliás, se prolongou por mais de duas   1983 tive conhecimento de que se encontrava hospitali-
           décadas. Dizia-se até que muitos nem tinham fato para   zado no Hospital Militar Principal, onde me desloquei.
           trajar à paisana.                                  Ao  chegar  ao  seu  quarto  estando  a  porta  entreaberta
              Descrita  a  época  vivida,  voltemos  ao  nosso  alferes.   entrei  e  aproximei-me  da  cama  devagar,  uma  vez  que
           Jovem garboso na sua farda de talabarte, resolve um dia   estava  de  olhos  fechados. Apercebendo-se  da  presença
           ir até à baixa lisboeta e, uma vez chegado ao Rossio, sobe   de alguém, abriu os olhos e agarrando-me o braço disse:
           a rua do Carmo, depois a rua Garrett, e entra no café A   ai Mesquita, que bom é termos amigos. A minha única
           Brasileira.                                        reacção  foi  a  de  colocar  a  minha  mão  sobre  a  dele.
              A Brasileira de então era frequentada por intelectuais,   Álvaro  de  Oliveira  veio  a  falecer  em  10  de  Janeiro  de
           artistas,  pintores,  escritores,  e  políticos,  como  de  resto   1984.
           sempre foi, e à entrada do jovem alferes moveram-se os
           olhares.
              Este impávido, atravessa o salão e vai sentar-se numa
                                                              (1)   Álvaro de Oliveira frequentou o Instituto Profissional dos Pupilos do Exér-
           mesa  ao  fim  do  mesmo.  Com  a  sua  voz  forte  o  nosso   cito de Terra e Mar de 1912 a 1918 com o n.º 63. Presidiu à direcção da
           alferes diz: pai venha cá. Todos olharam, curiosos, para   Associação de 1936 a 1939 e de 1965 a 1970.



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