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cRóNIcAs (cont.)
te do histórico acontecimento. E a heróica mulher e o seu
homem liberto labutaram depois quase junto a Loures,
ganhando a vida com o suor dos seus rostos e a dignidade
do seu trabalho, iniciado que tinham conseguido, num
terreno baldio com barraquinha feita à maneira antiga,
um expansivo negócio de ferro-velho, evoluído também
para velharias.
Mas depois, quando a conscienciosa criança por eles
gerada se foi transformando num “jovem leão” agarrando-
se aos estudos com “garras e dentes”, por vocação própria
(memória perene do sinistro moinho!) e seguindo o exemplo
de tenacidade e grande coragem dos progenitores, conse-
guiu recompensa-los, já um rapagão, passados os necessá-
rios anos de luta constante para se cultivar, o que lhe fa-
cultou poder ajudá-los a mudar de vida, licenciado que
ficou em advocacia, depois também, ainda melhor, com o
doutoramento.
E então os dois já velhos lutadores puderam compre-
Ao chegarem a Peniche a carrinha dirigiu-se ao porto, ender, por via do filho e do seu próprio atroz sofrimento,
perto do Forte onde estava o seu homem. as históricas mazelas da “gloriosa” Nação onde tinham
Aí uma enorme surpresa aguardava mãe e filho. A nascido. Porque, a par de um Povo magnífico, cantado em
praça encontrava-se repleta de povo que olhava o Forte. versos e trovas por esse mundo fora que ajudou a desbra-
Várias viaturas militares estavam estacionadas perto var, permanece ainda a malévola existência dos “vendilhões
do portão grande e muitos soldados de fardas esverdeadas do templo pátrio”, alheios ao povo para proveito próprio,
e espingardas em punho vagueavam um pouco por toda como lhes convém… Herança terrível que aquele Capitão
a parte por entre a multidão, falando amigavelmente com de sorriso amigo e coração puro, não pôde vencer com os
as pessoas. Lá em cima, nas muralhas do Forte, também seus camaradas… Mas o Povo Português um dia o fará,
havia soldados a olharem cá para baixo, para o mar de mais breve do que se possa imaginar, diz aos pais o doutor,
gente. porque os portugueses se irão cada vez mais consciencia-
A carrinha parou. O homem veio dizer que os tinha lizando da precariedade do sistema fraudulento, dito de-
de deixar ali e ajudou-os a saltar o pequeno taipal. Fez mocrático que a eles lhes convém. Por isso o têm impin-
uma festa ao garoto e abanou a cabeça a olhar para a gido ao Povo nestas últimas décadas, de tripa forra e de
mulher, rejeitando o agradecimento que lhe via nos lábios. esbulho, como se comprova pela situação presente pós
Depois conseguiu arrancar rumo à lota do peixe e foi gorada a “Revolução dos Cravos”.
dizendo, à sua e à filha, ser uma pena em dias daqueles Revolução que deveria ter ocasionado um novo e
ter-se pessoas chegadas da família assim tão doentes. melhor recomeço para Portugal, liberto dos crimes da
Os dois ficaram a olhar a cadeia cheios de angústia, ditadura que proporcionou o impasse da conjuntura co-
sem perceberem o que ali se passava, os corpos doridos o lonial praticada ao longo de séculos, para dilatar a fé e o
farnel na mão… império, como então se afirmava!
Um pouco mais tarde foi aquela alegria de nunca es- Porque cada vez com maior clareza se constata a tre-
quecer… os gritos do povo… agarrada ao homem com o mendamente cínica agressividade com que os fraudatula-
filho entre eles… mente ricos estão a ficar cada vez mais ricos a par da
A mulher poisou, num relance rápido, os olhos nos olhos miserabilização dos pobres e do definhamento progressivo
do homem fardado de rosto tisnado, barba por fazer, ex- da chamada classe média.
pressão enérgica na face cansada. Tinha três galões nos E diz ainda mais o motivado doutor de leis, profe-
ombros robustos e olhava para eles visivelmente comovido. tizando que a par de um R.M.G. (rendimento mínimo
Sem sentir porquê a mulher sorriu-lhe e o homem dos garantido) para cada cidadão, que lhe permita usufruir
galões dourados limpou a cara com as costas das mãos e das condições básicas da Existência Humana: alimenta-
sorriu também… ção, alojamento, vestuário, saúde e educação, por direito
de nascença, mesmo que comprovadamente nada possa
**** produzir, deverá também passar a haver o R.P.M.C.
(rendimento e património máximos consentidos) para
Trinta e oito anos passados o velho moinho já lá não todos os outros cidadãos, por dever de equidade social
se encontra, engolido que foi pela urbanização decorren- e sobrevivência da Nação Portuguesa (e até da espécie
6 | Boletim da Associação dos Pupilos do Exército