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cuLTuRA E cONhEcImENTO







                                  Blimunda


                                  (Continuando a falar


           RUI CABRAL TELO        de ópera e não só…)
           19480265




              aramago, numa entrevista ao Jornal de Letras, em 1990,   jejum, ter visão de raios X e poder ver as coisas e as pes-
           Sdisse a propósito de Blimunda:                    soas por dentro. E assim “via” nas entranhas de cada um
              (...)  Que  outra  condição,  então,  que  razão  profunda,   tudo aquilo que de mau habitava os seres humanos, mas
              porventura  sem  relação  com  o  sentido  inteligível  das   também as “vontades” que lhes permitiam lutar pela vida
              palavras, me terá levado a eleger esse nome entre tantos?   conseguir o bem de todos e tentarem transformar a socie-
              Creio que sei a resposta, que ela me acaba de ser apon-  dade em algo elevado e justo. Por isso, nunca olhou o seu
              tada por esse outro misterioso caminho que terá levado   Baltazar por dentro, porque o amava como era, comendo
              Azio Gorghi a denominar Blimunda uma ópera extraída   pão de olhos fechados, todas as manhãs, para quebrar o
              de um romance que tem por título Memorial do Conven-  jejum. Mulher sensual e inteligente, vivia em concubina-
              to:  essa  resposta,  essa  razão,  acaso  a  mais  secreta  de   to  com  o  seu  homem,  por  não  acreditar  numa  igreja
              todas, chama-se Música. Terá sido, imagino, aquele som   corrupta e aproveitadora das fraquezas do Povo e da rea-
              desgarrador de violoncelo que habita o nome de Blimun-  leza, não aceitando regras que a escravizassem.
              da, profundo e longo, como se na própria alma humana   “  (…)  Baltasar,  leva-me  para  casa,  dá-me  de  comer,  e
              se produzisse e manifestasse, que me levou, sem nenhuma   deita-te comigo, Porque aqui adiante de ti não te posso
              resistência, com a humildade de quem aceita um dom de   ver, e eu não te quero ver por dentro, só quero olhar para
              que não se sente merecedor, a recolhê-lo num simples livro,   ti, cara escura e barbada, olhos cansados, boca que é tão
              à espera, sem o saber, de que a Música viesse recolher o   triste,  mesmo  quando  estás  ao  meu  lado  deitado  e  me
              que é sua exclusiva pertença: essa vibração última que   queres (...) MC.”
              está contida em todas as palavras e em algumas magni-  Blimunda acreditou na “fé” do querer voar de Barto-
              ficamente."                                     lomeu e, ajudou-o sacando “vontades” que lhe permitiram
              Saramago não autorizou que o seu livro “Memorial do   encher os balões que elevaram a sua “passarola”.
           Convento”, servisse de tema para um filme ou até peça   Foi a musicalidade desta personagem, que levou Sara-
           de teatro e, fê-lo, porque achava que a sua personagem   mago a aceitar que Azio Gorghi compusesse e encenasse
           Blimunda não poderia ser descrita em imagens ou sequer   uma ópera denominada Blimunda.
           representada em palco. Realmente, Blimunda é uma per-  A  ópera  foi  estreada  no Teatro  Lírico  de  Milão  em
           sonagem de tal modo complexa que se tornaria impossível   Maio de 1990, tendo tido grande aceitação do público já
           transportá-la para um “écran” ou para um palco.
              Blimunda é a encarnação de um “Espírito Santo” numa
           trindade  imaginada  por  Saramago.  O  Padre  Bartolomeu
           Lourenço de Gusmão será “Deus” e, Baltazar, O Sete-sóis,
           a encarnação de “Deus” na terra.
              Bartolomeu, o frade sonhador e inventor de uma má-
           quina  de  voar,  afrontando  a  Igreja,  numa  idade  média
           assombrada pela terrível Inquisição, tentou elevar-se nos
           céus, o que, até ali, só era domínio de Deus
              Baltazar, o Sete-Sóis, era o abnegado soldado, solidário
           com o seu próximo, sempre pronto a ajudar os fracos e
           oprimidos, num Portugal triste e cinzento para o Povo e
           em que o clero impunha a sua vontade a uma nobreza
           podre e mesquinha vivendo das riquezas do País e deixan-
           do o Povo na miséria.
              Blimunda,  a  vidente,  mulher  de  poderes  incomuns
           herdados de sua mãe que, por ser vista como feiticeira foi
           degredada. Blimunda tinha a faculdade de, enquanto em



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