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cultura e coNhecimeNto
eterno. Nenhum homem, por mais poderoso que seja, deve guesa sempre foi alvo de críticas da minha parte. Toda a sua
desafiar a sua eternidade. Ele permanecerá entranhado no apatia, falta de inércia, de vontade, de projectos, toda a sua
nosso coração, a paixão correr-nos-á fervorosamente pelas vida falhada me fazia grande confusão. Porém, com o decor-
veias, o desejo apoderar-se-á da nossa mente. rer do diálogo, constatei que as diferenças que as nossas
Estava preso a algo ilegítimo, imoral, impraticável no educações deveriam gerar estavam totalmente esbatidas,
entanto tão verdadeiro, intenso, pleno e perfeito. sendo as semelhanças entre a minha vida e a dele óbvias.
O estatuto de espectro no mundo já há muito tinha sido Sim Vilaça, tal como o Eusébiozinho, eu era um falhado a
assumido por mim, porém agora lidava com a sensação de quem a vida não suscitava o mais ínfimo interesse. Isto levou
ser um prisioneiro, a quem algo tirou a vida. Sim, porque o me a pensar na desilusão que o meu querido avô sentiria se
amor por Maria Eduarda matou-me. conhecessem este novo Carlos, do qual eu não gostava mas
Ontem sentei-me na velha poltrona do avô e observei contra o qual não tinha forças para lutar.
aquele bocado de parede branca por cima da lareira que Amigo Vilaça, sou, de facto, um falhado da vida, alguém
ardia penosamente onde, na minha cabeça, figurava o retra- que está preso a um sentimento pleno mas ilegítimo, alguém
tado do nosso querido Afonso da Maia. Uma saudade dolo- que viveu toda a vida num contexto que agora perdeu todo
rosa fustigou-me a alma tal como o vento fustiga os ramos o sentido, alguém a quem a saudade corrói as entranhas do
de uma árvore. Voltei a questionar me sobre a relevância da coração, alguém que não encontra uma única razão para
minha existência sem a presença do avô, a única pessoa no viver, nem um refúgio, um esconderijo já que Lisboa afinal
mundo que me amara, legitimamente. E chorei, derramei também já não me é nada.
lágrimas incontroláveis durante horas, deixando que a emo- Em tempos, silenciosamente, chamei o meu Pai de cobar-
ção e o sentimento se apoderassem de mim, me matassem... de, pois agora também eu o sou.
Recordo-me ainda de um episódio que gostava de partilhar Eterno amigo Vilaça, já que não encontro sentido para a
contigo, amigo Vilaça. No outro dia, no decorrer de um pas- vida, então que o tenha a morte.
seio matinal pelo Aterro, deparei-me com o nosso querido
Eusébiozinho. Por não nos vermos há tempo considerável, Carlos da Maia.
estacámos ambos à frente um do outro, iniciando-se uma
conversa que seriamente me traumatizou. Tu sabes como Nota Final: Carta encontrada junto ao cadáver de Carlos da
o facto de ele ser o produto da educação tradicional portu- Maia depois de este se ter suicidado como seu pai o fizera.
62 Boletim da associação dos PuPilos do exército