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cultura e coNhecimeNto



          mAriANA T.
          DA moTTA
                                                               Eu sei, querido Vilaça, que te questionas sobre qual terá
                                                             sido a origem, de onde partiu toda esta censura, talvez até este
                                                             ódio. Debati-me com esta questão durante algum tempo, mas
          Querido Vilaça,                                    não quero aceitar a resposta, não quero que Ela seja a culpa-
                                                             da de mais um dos mil dissabores que a vida guardou para
                                                             mim. Mas foi. Foi Maria Eduarda, ou a sua ausência, que
                                                             fez eclodir dentro de mim esta revolta face a Lisboa, talvez por
            Após a leitura da obra Os Maias, de Eça de Queiroz,   ser a única coisa contra a qual me posso ainda revoltar.
          nasceu em mim um interesse, talvez motivado pela exce-  Lisboa foi o palco da peça mais intensa da minha vida,
          lência da escrita desta personagem que tanto admiro, de   foi  onde  eu,  seguramente,  atingi  o  auge  da  realização,  do
          continuar a sua história e assim escrever um último capí-  romance, da felicidade. O auge do amor... Foi a cidade que
          tulo, um epílogo, para a obra. Aqui o apresento.   acolheu a minha paixão louca: os seus olhos presenciaram
                                                             cada pecado cometido, os seus ouvidos escutaram profundas
            Lisboa, Ramalhete, 22 de Outubro de 1887         e sinceras declarações de amor verdadeiro. Foi aqui que tudo
                                                             começou e que tudo acabou.
            Querido Vilaça,                                    Querida Lisboa gostava de ainda conseguir olhar para ti
            Passaram dez anos desde o meu regresso à nossa pátria,   com os olhos de um patriota orgulhoso, de um cidadão encan-
          à histórica cidade de Lisboa. Confesso-te que a saudade e a   tado. Mas confesso-te, já não é possível. Não encontro discer-
          nostalgia amoleceram a minha capacidade de ver as coisas   nimento suficiente para perceber se és tu que estás diferente
          na sua essência, o meu sentido crítico. Porém o tempo, e os   ou se é o meu olhar que, ferido pela vida, pinta o seu próprio
          azares da vida, dos quais não quero ter a mais ínfima recor-  quadro. Simplesmente para mim a mudança é uma realidade.
          dação, trouxeram-no de novo, mais rígido intolerante, intran-  Há três semanas fui ao São Carlos, assistir a uma ópera
          sigente e inflexível.                              chata qualquer (desculpa a desmotivação mas é inevitável).
            Em conversa com o meu querido amigo Ega, a quem a   Esta revolta patente com a sociedade de Lisboa levou-me a
          depressão corrói as entranhas do ser e o mantém prisioneiro   desafiá-la, a querer por em causa os tão dogmáticos códigos
          de Celorico, concluímos que éramos, de facto, uns falhados   sociais,  as  verdades  absolutas.  E  sabes,  querido Vilaça,  no
          da vida. Falhámo-la tal como um caçador falha, miseravel-  momento em que reflecti sobre isto, tudo perdeu o sentido.
          mente, o tiro a um animal ferido.                    Eu  pergunto-me:  para  quê?  Para  quê  todas  as  idas  ao
            Durante a minha viagem pelo mundo consegui abstrair me   teatro da Trindade, ao Hotel Central? Para quê as corridas
          desta dura realidade, deste facto lancinante. Porém, o regresso   no hipódromo, as roupas exuberantes, as discussões ardentes
          a Lisboa e a necessidade de encarar a vida no seu contexto   (e ignorantes) sobre política, religião, finanças? Para quê esta
          mais  doloroso,  foram  inevitáveis.  Uma  exigência  da  minha   vida boémia, extravagante? Para quê esta vida cheia de nada
          consciência, talvez um desafio para a minha solidez emocional.   e vazia de tudo...?
            Fi-lo e, por esta altura, estarás tu a concluir que o falhei.   Amigo Vilaça, pergunto-te, para quê viver se a vida já
          Lamento. A falha já é uma constante na minha vida.  perdeu todo o sentido? Questionei-me a mim mesmo, e en-
            Querido amigo Vilaça, admiro-te profundamente por seres   contrei uma réstia de esperança, um raio solar proveniente
          capaz de permanecer nesta Lisboa sem qualquer sentimento   de uma barreira de nuvens: o amor.
          de revolta, de mediocridade, de infelicidade. Invejo-te pois eu   É a ele que qualquer herói épico se agarra, com toda as
          já estou a ser dilacerado por ele e, acredita, a dor é terrível.   forças  que  detém,  com  tudo  aquilo  que  é.  Durante  anos
            Provavelmente perguntas-te como é que um amante da   andei iludido, crente no facto de este me ter dado uma se-
          vida  boémia  de  Lisboa,  um  apaixonado  pela  sociedade  e   gunda oportunidade e portanto, também eu lha dei.
          respectivos  costumes  perde,  subitamente  o  interesse.  Mais,   Confesso-te que nos últimos dois anos revivi o romance,
          critica-a impiedosamente, como um estrangeiro movido por   ainda que meramente carnal, com a condessa de Gouvarinho.
          um sentimento de vingança. Pois, digo-te que a vida me en-  O que ao início foi apenas uma satisfação de desejos ineren-
          sinou que nada é linear e que nenhuma realidade é eterna.  tes ao homem, passou a uma ilusão de amor. Aqui assumo
            Os  meus  dez  anos  de  viagem,  os  quais,  legitimamente,   as culpas. A necessidade que eu tinha de me agarrar àquilo
          apelidas de fuga, serviram apenas para tornar o regresso mais   como um náufrago agarra a ultima lasca de madeira, levou
          doloroso, o reviver intensamente dilacerante. Entre as poucas   me a acreditar que Maria Eduarda e que aquele nobre sen-
          coisas com as quais ainda julgava identificar-me, estava a   timento nutrido por ela pertenciam ao passado. Levou-me a
          "tua" Lisboa. Esperava cegamente que esta me devolvesse a   cair na ilusão de que a tinha esquecido e que estava prepa-
          minha identidade, a minha honra. Confesso-te, depositei nela   rado para construir o presente.
          todas as esperanças de me reencontrar, mas fui traído. A faca   Digo-te, Vilaça, mais um erro que podes somar aos inú-
          nas costas foi tão profunda que, talvez por fraqueza minha,   meros cometidos ao longo da minha vida e com o qual deves
          não consegui aguentar a dor.                       aprender.  O  amor,  quando  realmente  sentido  e  vivido,  é


                                                                                        Boletim da associação dos PuPilos do exército  61
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