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PALAVRAS DESENHADAS Crónicas
COINCIDêNCIAS
oi no dia do meu aniver- nos abraça, este expediente me pelo peso dessa soma gradual de
sário que publiquei um persegue e alguns dos meus cole- dias e de meses… de anos, mesmo…
texto no meu Facebook e gas de então lembrarão talvez a o que me pode ainda atormentar é
assim nasceu a ideia de mania quase obsessiva que me a diferença que isso causa na pers-
Fvir a contribuir com cró- perseguia já nesses idos anos da pectiva do tempo que ainda nos
nicas avulso no nosso boletim. O nossa juventude. Considero que a sobra, quando ainda há tanto para
texto chamava-se precisamente palavra é das maiores riquezas ser feito… tanto para sermos nós e
“coincidências”, para assinalar o que nos é transmitida, porque com os outros todos a fazê-lo… ainda e
acaso de ter sido nesse dia, em que ela temos a glória de nos poder- sempre… como dizia Séneca, filó-
completava sessenta e um anos, mos retratar e também debruçar- sofo romano, “morremos a cada
que, para os mo-nos sobre aquilo que de mais dia que passa, a cada dia falta uma
meus amigos e importante existe à nossa volta, as parte da vida”...
ex-condiscípu- pessoas e as suas histórias, os seus Acontece que no mesmo ano
los do pilão, bem dramas, as suas capacidades e in- deste meu aniversário, apenas um
assim como ou- fortúnios ou apenas os traços que apontamento no esquisso da mi-
tros amigos e co- nos deixam gravados no olhar do nha vida, se comemora outra efe-
nhecidos, abria nosso pensamento… méride ligada à minha passagem
uma pequena ja- Sessenta e um anos não é muito pelo pilão. Cinquenta anos desde o
nela do meu nem pouco. Nunca me antevi com dia em que essa casa “tão bela e tão
mundo mais in- esta idade, pois a cronologia das ridente”, me acolheu e a mais cin-
Ernani Balsa terior, por onde minhas primaveras ficou-se nos quenta e seis colegas, num percur-
(19600300) pudesse deixar quarenta, que eu sempre conside- so que se prolongou por mais ou
passar algumas rei uma meta plenamente confor- menos uma dezena de anos. o tem-
das minhas inquietações, dos tável e tangível, uma idade que po e a vivência comum, cimenta-
meus sonhos, das minhas refle- nos distancia duma juventude dos pelos princípios e valores que
xões e da minha maneira mais ín- ainda imberbe e não menos rebel- nos foram sendo inculcados, alia-
tima de ver o mundo. de e nos dá a segurança dum esta- dos ao conhecimento e experiência
Nem eu próprio sei se foi coin- do adulto conseguido. Por essa ra- transmitida, constituíram as fer-
cidência. Estas coisas dos acasos zão, a partir daí, a idade deixou de ramentas que ao longo da nossa
acontecem e não vale a pena tentar me fazer qualquer impressão e vida nos permitiram enfrentar as
atribuir-lhes motivos ou justifica- tornou-se irrelevante, porque vicissitudes do mundo que nos ro-
ções. sempre pude preservar a rebeldia deia e ao mesmo tempo usufruir-
Os espaços brancos, sejam eles que me faz falta, a inquietação que mos desta riqueza que é a amizade
pautados, quadriculados ou mera- me impulsiona em cada dia que e camaradagem que nos distingue
mente vazios na sua imensa bran- passa e a vital capacidade de po- de muitos outros grupos.
cura sempre me atraíram para es- der pensar por mim mesmo, sem À distância de cinquenta anos,
crever e neles deixar um testemu- ter qualquer receio de ser incómo- ainda nos conseguimos lembrar
nho do meu pensamento. Não é do, inoportuno ou excêntrico, des- quase em pormenor dos nossos
que seja o meu pensamento algo de que tudo o que expresse venha primeiros passos em S. Domingos
que eu considere essencial para os de dentro de mim e respeite o pró- de Benfica, mas também dos nos-
outros, mas essencial é certamen- ximo e a sua identidade, indepen- sos receios e saudades da família,
te a necessidade que sinto em mim, dentemente das suas opções polí- das nossas dúvidas, que a pouco e
de poder desenhar com letras, ca- ticas, religiosas ou intelectuais e a pouco se foram transformando
racteres, palavras ou imagens as sua condição social. A dignidade, num orgulho enorme em perten-
inquietações que me assaltam, apenas a dignidade das pessoas cermos à gesta daqueles que desde
porque isso é um sinal inegável de me importa e respeitá-la é respei- a fundação do instituto nos prece-
que estou vivo, continuo vivo e tar-me a mim próprio. É caminhar deram e se foram tornando no es-
quero muito continuar vivo cada vez mais convicto de que tudo teio que todos nós, vivos e ausen-
Desde muito novo que uso esta pode ser desenhado com as pala- tes, constituímos como o legado
ferramenta para expressar aquilo vras que vamos alinhando na nos- das almas nobres que deram vida
que, se calhar, não tenho a facili- sa caminhada por este mundo, à nossa casa, nos anos ainda ten-
dade de testemunhar de outro sem sequer termos a certeza se ou- ros da república, cujo centenário
modo. Desde os tempos já longín- tro existe… também este ano se comemora...
quos em que estudava no pilão, ca- O passar dos anos não me ator- Tudo uma questão de coinci-
rinhosa designação que a todos menta pelos sinais exteriores ou dências, como se vê...
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